Reflexões sobre uma identidade afro-descendente

por ROSÂNGELA ROSA PRAXEDES*

Pretendo abordar neste artigo algumas reflexões sobre a noção de identidade para tentar dimensionar o significado do contexto atual brasileiro, no qual está em processo uma redefinição da identidade dos afro-descendentes. As diferentes construções identitárias nascem em contextos sociais específicos e devem ser pensadas em uma perspectiva relacional, ou seja, como resultantes das relações sociais que ocorrem no cotidiano dos atores sociais, e não como propriedades intrínsecas compostas por uma essência imutável.

Para compreendermos o momento atual das discussões em torno de políticas afirmativas para afro-descendentes em nosso país, recorro, portanto, a uma abordagem do fenômeno da identidade do ponto de vista relacional, deslocando-o “do campo conceitual para o político: a identidade não é mais definida como um modo de ser cuja natureza profunda é preciso revelar, mas como um jogo simbólico no qual a eficácia depende do manejo competente de elementos culturais.” (MONTERO, 1997, 63)

A questão da cotas e políticas afirmativas para afro-descendentes se torna política quando estes intentam a construção de uma identidade coletiva, adquirem visibilidade no espaço social e lutam abertamente por um espaço destinado estruturalmente aos não-negros. A aceitação pacífica e quase calada da hierarquização da relação branco-negro, em que o primeiro obtém privilégios sociais em nossa sociedade, cria um desconforto geral quando é posta em xeque, por exemplo, através da proposta de implementação de cotas para negros no ensino público superior.

Segundo Chantal Mouffe, no campo das identificações coletivas, quando o “outro”, “…que até então tinha sido considerado sob o modo simples da diferença, começa a ser percebido como aquele que nega minha identidade e questiona minha existência”, tal diferenciação seja étnica, religiosa, econômica etc. se torna eminentemente política. Para Mouffe, “a política, de fato, tem a ver com a ação pública e a formação de identidades coletivas. Seu objetivo é a criação de um ‘nós’ em um contexto de diversidade e de conflito. Mas para construir um ‘nós’, é preciso poder distingui-lo de um ‘eles’. Por isso, a questão crucial de uma política democrática não é como chegar a um consenso sem exclusões ou como criar um ‘nós’ que não tivesse um ‘eles’ como correlato, mas como estabelecer esta distinção nós/eles de uma maneira que seja compatível com a democracia pluralista.” (MOUFFE, 1999: 270)

De outra perspectiva, embora complementar à apresentada acima, a identidade é formada pela visão que temos de nós mesmos e também pela forma que o outro nos vê, “… quer a identidade seja atribuída ao indivíduo, quer seja adquirida por ele, ela sempre é assimilada por um processo de interação com outros. São outros que o identificam de certa maneira. Só depois que uma identidade é confirmada pelos outros, é que pode tornar-se real para o indivíduo ao qual pertence. Em outras palavras, a identidade resulta do intercurso da identificação com a auto-identificação. Isto explica até as identidades deliberadamente constituídas pelo próprio indivíduo.” (BERGER e BERGER, 1984: 212).

Castells (2000: 24) observa que as identidades “constituem fontes de significado para os próprios atores, por eles originadas, e constituídas por meio de um processo de individuação”, o que torna toda e qualquer identidade resultante de uma construção, que tem como objetivo organizar significados que se mantenham ao longo do tempo, em um determinado espaço e em um contexto social e político fortemente marcado por relações de poder. Por isso Castells propõe a seguinte distinção entre os processos de construção de identidades:

“ – Identidade legitimadora: introduzida pelas instituições dominantes da sociedade no intuito de expandir e racionalizar sua dominação em relação aos atores sociais; Identidade de resistência: criada por atores que se encontram em posições/ condições desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela lógica da dominação, construindo, assim, trincheiras de resistência e sobrevivência com base em princípios diferentes dos que permeiam as instituições da sociedade, ou mesmo opostos a estes últimos; Identidade de projeto: quando os atores sociais, utilizando-se de qualquer tipo de material cultural ao seu alcance, constróem uma nova identidade capaz de redefinir sua posição na sociedade e, ao fazê-lo, de buscar a transformação de toda a estrutura social.” (CASTELLS, 2000: 24)

Utilizando-se destes modelos criados por Castells, pode-se dizer que para a população negra a superação dos estereótipos vinculados à cor, (admitindo-se que os negros se encontram muito freqüentemente realizando atividades desprestigiadas socialmente), constitui-se um problema que podemos associar a uma redefinição da própria identidade negra.

Podemos, portanto, considerar como um uma tentativa de legitimação da desigualdade racial a imposição da racionalização do racismo, exemplificada pela ideologia do branqueamento e demais formas de preconceito e discriminação racial contra o negro, existentes no Brasil, de acordo com as quais se reserva para o negro um espaço social, político, econômico e cultural subalterno.

Considerando que o processo de identificação jamais pode ser tomado como uma via de mão única, a difusão da ideologia e das práticas  racistas geram a conformação de uma identidade de resistência, que pode ser exemplificada pelas estratégias de distinção desenvolvidas pelos afro-descendentes para fugir das posições predeterminadas para o negro pelas formas de identidade legitimadora difundidas pelas instituições e classes dominantes. Segundo Munanga,

“…a identidade é uma realidade sempre presente em todas as sociedades humanas. Qualquer grupo humano, através do seu sistema axiológico sempre selecionou alguns aspectos pertinentes de sua cultura para definir-se em contraposição ao alheio. A definição de si (autodefinição) e a definição dos outros (identidade atribuída) têm funções conhecidas: a defesa da unidade do grupo, a proteção do território contra inimigos externos, as manipulações ideológicas por interesses econômicos, políticos, psicológicos, etc.” (MUNANGA, 1994:177-178)

Podemos, assim, constatar como as relações entre os agentes expressam simultaneamente um conteúdo simbólico no espaço social: ser é estar em relação e possuir uma posição com um significado para o outro. É neste sentido que muitos afro-descendentes atualmente se empenham em conquistar posições sócio-ocupacionais e políticas no espaço social, que levem a uma redefinição de sua relação com os demais segmentos étnicos presentes na população brasileira.

Referências

BERGER, P. & BERGER, B. “Socialização: como ser um membro da sociedade”, In: FORACCHI, M.M. E MARTINS, F.S. (org.). Sociologia e Sociedade. Rio de Janeiro, Livros Técnicos e Científicos Editora S.A., 1984.

CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2000.

MOUFFE, Chantal. “Por uma política da identidade nômade”. In: Debate Feminista. São Paulo, Companhia Melhoramentos, 1999.

MONTERO, Paula. “Globalização, identidade e diferença”. In: Novos Estudos – CEBRAP, nº 49, novembro, 1997.

MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil. Petrópolis, Vozes, 1999.

______. “Identidade, cidadania e democracia: algumas reflexões sobre os discursos antiracistas no Brasil”. In: SPINK, Mary Jane Paris (Org.) A cidadania em construção: uma reflexão transdisciplinar. São Paulo: Cortez, 1994.

SILVA, Maria Nilza da. A mulher negra: o preço de uma trajetória de sucesso. Dissertação apresentada à Universidade Católica de São Paulo para obtenção do título de mestre, s/d.


* Mestrado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2006). Atualmente cursa o doutorado em Antropologia na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Publicado na REA, nº 23, abril de 2003, disponível em http://www.espacoacademico.com.br/023/23rpraxedes.htm

15 comentários sobre “Reflexões sobre uma identidade afro-descendente

  1. eu mesmo nao penso dessa forma tenh 15 anos e acho que nesse ponto estao de todos os modos bem desvalorizadas nao contem mas aquele valor que tinha antes e é isso que eu penso a respeito

  2. Rosângela,
    Nós, brasileiros, nesse quadro, somos um povo em ser, impedido de sê-lo. Um povo mestiço na carne e no espírito, já que aqui a mestiçagem jamais foi crime ou pecado. Nela fomos feitos e aindacontinuamos nos fazendo. Essa massa de nativos oriundos da mestiçagem viveu por séculos sem consciência de si, afundada na ninguendade. Assim foi até se definir
    como uma nova identidade étnico-nacional, a de brasileiros. Um povo, até hoje, em ser, na dura busca de seu destino.
    A nação brasileira é, portanto, uma nação mestiça e sincrética em suas práticas religiosas, uma nação presenteada com uma rica flora e fauna, uma nação multicor. Uma nação que possui um pouco de cada uma das civilizações que por aqui chegaram, “todo brasileiro, mesmo o mais claro e louro, traz consigo, em sua alma, quando não no corpo também […] a sombra, ou ao menos a marca de nascença do índio ou do negro”.
    O problema do acesso dos afrodescendentes ou carentes à educação superior é um problema a ser enfrentado pela sociedade brasileira, e esta carência tem originado reivindicações e pressões por uma melhor gestão dos recursos públicos, no que diz respeito ao ensino público fortalecendo nesse sentido uma melhor qualidade.

  3. Sensacional é estar viva e presenciar no Brasil este momento histórico:o negro se apropriar do que é seu.
    Eu não me lembro com exatidão todos os resultados mas gostaria entretanto de acrescentar que: em recente pesquisa feita aqui, perguntaram à população se votariam em um negro, mulher ou homossexual p/ presidente.
    As respostas foram (aproximadamente):
    Mais de 85% VOTARIAM em um candidato negro;
    Mais de 65% votariam em uma candidata mulher
    Menos de 35% votariam em um candidato homossexual. Sim, ainda temos muito trabalho pela frente em termos de preconceito no Brasil. Um deles é achar que terapia é para loucos…

    Cristina Marques
    Psicóloga
    http://www.soscasalefamilia.com.br

  4. li com prazer e admiraçao este artigo perfeitamente desenvolvido, argumentado e concluido.
    continuo achando que em complemento a este ponto de vista, é bom nao esquecer que NOS SOMOS UMA NAçAO MESTIçA e que é necessario assumir isto para nos colocarmos no mundo, sob pena de apresentarmos sempre uma espécie de “cara de alvaiade”, inevitavelmente um pouco grotesca.
    em outras palavras, acho que nossa construçao identitaria passa por uma espécie de reconhecimento de que somos TODOS afro-descendentes, uns explicitamente, outros perfeitamente branqueados – toda mistura bem batida tende a branquear, como quelquer um que ja pôs o pé na cozinha – ou a mao na massa – sabe perfeitamente.
    isso dito, reconheço que ha que separar reflexao e estratégias de defesa – as politicas afirmativas continuam sendo necessarias, dadas todas as nossas caracteristicas historicas e limitaçoes de visao.

  5. Boa noite!!! ROSÂNGELA ROSA PRAXEDES! Considero bastante instigante a sua perspectiva de refletirmos nesta direção, a questão da nossa indentidade.Pois tenho percebido que essa discussão, considerando a clareza dos sujeitos numa perspectiva política das relações nos possibilitará dar um norte mais possitivo para as nossas discussões junto a sociedade civil, Movimentos Negros e as próprias políticas desenvolvidas pelos Estados,Federação e Municípios acerca das políticas de ações afirmativas. Considerando as especificidades com que cada região brasileiraaborda as questões de identidade em especial a de autodeclarar – se “Negro” e/ou “Pardo”.
    Belo artigo.
    Esvaldo da Costa Alves
    Sou Historiador,Pós-graduado em Gestão Cultural eGestão de Patrimônio, faço parte de grupos de discuti essa temática – dentro da Universidade(Unileste-MG)e na sociedade civil Grupo de Professores e Movimento Negro na Região Metropolitana do Vale do Aço. Compostapelas cidades de Ipatinga, Coronel Fabriciano, Timóteo, Santana do Paraíso.

  6. Lamentável esta análise. As diferenças entre grupos raciais e étnicos não justificam a criação de privilégios. A sociedade deve ser baseada na igualdade de oportunidades e direitos. Os menos favorecidos devem buscar políticas afirmativas que não os faça privilegiados, porém participantes: este é o significa de inclusão. Todo o resto é exclusão por usurpação.

  7. Muy importante y valioso el trabajo de la doctoranda Rosângela R.Praxedes. Su aportación contribuye a dilucidar por dónde van las sendas investigativas sobre la cuestión de la identidad. Para quienes encaramos investigaciones históricas, en las líneas investigativas de Identidad, etnicidad, Símbolos e Imaginário, los artículos como los de Rosàngela nos favorecen mucho. En Paraguay, la discusión sobre el espacio social y la sociablidad de los afrodescendientes, si bien ha comenzado hace bastante tiempo, hoy recién florece, en un tiempo en que comienza esa epifanía que lo cultural separa más que lo racial.
    Ricardo Pavetti
    UNA Asunción Paraguay

  8. Na atual circunstancia, quando as cotas teem sido questinoda pelos anticotistas como um modelo de racismo as avessas, ter um artigo como este é de grande relevancia para nossa luta, pena que poucas pessoas se interessem em ler, se informar pra depois se dizer contra ou a favor, mas vale a pena continuar mostrando a realidade e as verdades.

    Parabens à REA

  9. Oi Rosangela,

    Parabéns pelo texto. A luta pelo fim das desigualdades raciais deve estar na pauta do dia de todos os que vislumbram uma sociedade mais justa e igualitária.
    Um Abraço,
    Cleyde R. Amorim
    Coordenadora do Programa Núcleo de Estudos Interdisciplinares Afro-Brasileiros – NEIAB/UEM.

  10. Reflexoes sobre uma identidade euro-descendente
    Paulo Roberto de Almeida

    Vou comecar um estudo para provar que os euro-descendentes vem sendo discriminados nas politicas publicas do Brasil, como nunca antes nestepaiz, e que isso vai causar problemas mais adiante quanto a identidade daqueles euro-descendentes que tambem tem vinculos formais de familia com afro-descendentes, causando, assim, um terrivel problema de identidade dos individuos em questao.
    Como é que eles deverão se comportar?: afirmar sua parte de identidade euro-ascendente, ou afirmar, exageradamente, seus traços afro-ancestrais?
    O problema não é teórico e sim prático, pois se o indivíduo em questão afirmar mais seu lado euro do que seu lado afro, ele pode perder as muitas oportunidades — ingresso na universidade pública, cotas para empregos em serviços estatais, etc — que vem sendo oferecidas aos afro, de forma absolutamente discriminatória e até racista.
    Ou seja, existe um grande problema de identidade sendo construído no Brasil, a partir de politicas oficiais.
    Pena que acadêmicos não antecipem sobre problemas que vão surgir, inclusive sobre a possibilidade de estar sendo construido um novo Apartheid no Brasil.

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