FÁBIO VIANA RIBEIRO*
Não é bem a ideia dessas resenhas escrever a respeito de filmes já muito conhecidos. E é esse o caso de “Rastros de ódio”. A exceção se justifica pelo comentário de uma leitora e pela (remota) possibilidade de haver ainda uma ou duas ideias que poderiam ainda não terem sido escritas sobre o filme.
Em qualquer lista feita sobre os melhores filmes de faroeste feitos até hoje, “Rastros de ódio” aparecerá entre os cinco primeiros filmes; e na maioria das vezes como o primeiro. De fato, em 1956, tanto John Ford quanto John Wayne já haviam acumulado experiência e talento para realizarem um filme que sintetizaria algumas das principais ideias do gênero e de sua (principalmente de John Ford) forma de ver o mundo. Não bastasse isso, o fato de ter sido filmado pelo sistema Vista Vision e ter como cenário a região de Monument Valley, faz dele um filme visualmente belíssimo.
Durante boa parte da minha vida considerei filmes de faroeste como “expressões menos significativas de arte”. Levei décadas para perceber, por meio das observações de um amigo e antigo aluno, que havia algo de muito interessante e realmente relevante em alguns filmes de faroeste. Como, de resto, em qualquer outro gênero cinematográfico e não obstante se tratar, no caso de westerns, quase sempre de cinema americano, de interpretações questionáveis da história dos Estados Unidos, etc. Em geral é preciso certo tempo para se perceber que existem outros filmes e outras ideias além daqueles que conhecemos em nossos primeiros anos de vida; e um tempo maior ainda para percebermos a existência do valor de muitas ideias que havíamos presunçosamente deixado para trás. Consta que Orson Welles teria visto “No tempo das diligências” mais de 40 vezes; filme também dirigido por John Ford, também filmado em Monument Valley e tendo John Wayne em seu primeiro papel principal. Isso em 1939, quase vinte anos antes de “Rastros de ódio”.
Além de tudo o que normalmente é escrito a respeito de “Rastros de ódio”, existe talvez uma ideia importante no filme, sugerida pelo título e pela inesquecível cena final, e por aquilo que diz a música. “Rastros de ódio” é o infeliz título para o original “The searchers”. Ao final do filme, a música pergunta: “Um homem procurará em seu coração e sua alma, procurará em toda parte, sua paz de espírito. Ele sabe que vai encontrar. Mas onde, Senhor? Senhor, onde?” Menos talvez que a própria sobrinha, que havia sido levada pelos índios após o massacre de sua família, toda a longa busca, que se estende por anos, termina por não ser mais apenas a busca por vingança ou pela única sobrevivente do massacre. Talvez mais que isso, e mesmo mais que o contido desespero do personagem, que tenta encontrar sentido para sua própria vida, após retornar da guerra e já não ter mais exatamente para onde ir.
Sob o ponto de vista de Ethan, o tio que parte em busca da sobrinha em companhia do irmão adotivo desta, contornar a fatalidade do mundo, e seu sentido frequentemente trágico, só pode ser feito ao custo da própria vida. Compreender o mundo significa ausentar-se do mundo. Assim são as coisas e assim teremos de ser, se quisermos sobreviver a tudo que conspira contra nossa própria frágil e imperfeita existência. É nesse aspecto, talvez o principal, que “Rastros de ódio” é um filme profundamente religioso, no sentido pleno do termo.
Apesar de ser comum aos fãs de faroeste medirem a qualidade dos filmes do gênero pela quantidade de tiros, tanto quanto vingança, morte e violência serem palavras mais que recorrentes nos títulos, não raro, mais ainda no caso dos clássicos, tema igualmente recorrente é o da injustiça e da desigualdade de forças: entre os que têm poder e os que não têm, entre grandes e pequenos proprietários de terra, etc. Em muitos dos clássicos, e também contrariando o senso comum, menos que o herói, é o homem comum, destituído de super poderes, quem frequentemente se sobressai e justifica, por assim dizer, o prosseguimento da vida: é assim em “O homem que matou o facínora” (onde o verdadeiro herói é aquele que, sem qualquer chance, enfrentou o facínora), em “O cavaleiro solitário”(onde o minerador se recusa a deixar seu garimpo apesar de todas as ameaças e violência do grande proprietário) e também em “Onde começa o inferno”, (onde o desacreditado auxiliar do delegado luta contra sua dependência do álcool e contra todos os bandidos). Em “Rastros de ódio”, é também o sobrinho o verdadeiro herói do filme, caso esta característica seja medida apenas em termos de coragem; é ele quem, ainda muito jovem e subestimado pelo tio, demonstra enorme coragem para resgatar a irmã. Contudo, a grandeza do herói nos melhores filmes de faroeste, e também em “Rastros de ódio”, possivelmente o melhor de todos eles, seria imperfeita e diria muito pouco a respeito de si mesmo, caso fosse medida apenas por sua coragem.
Ficha Técnica
Título original: The Searchers.
Elenco: John Wayne, Jeffrey Hunter, Ward Bond.
Direção: John Ford
Ano: 1956.
País: Estados Unidos.
Duração: 119 minutos
* FÁBIO VIANA RIBEIRO é professor adjunto da Universidade Estadual de Maringá (Departamento de Ciências Sociais) e doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).
Muito bom Fábio! Filmaço excepcional e boa crítica! Deixo aqui a dica do Podcast Filmes Clássicos que produziu episódio sobre este clássico. http://filmesclassicos.com.br/2016/03/15/rastros-de-odio/
Abs!
Claudio,
Obrigado pela leitura e citação!
E um abraço!
Cara Vera,
Como deve ter percebido, o texto sobre “Rastros de ódio” foi escrito em função de seu comentário em “Bravura indômita”. Senti-me na obrigação de escrevê-lo. rs
Eu também tenho lembranças semelhantes de minha infância. E também perdi minha irmã, com quem partilhei também muitos momentos quando éramos crianças. Sinto muito pela perda de seu irmão, em circunstâncias tão trágicas. E admiro muito sua grandeza de alma, se penalizando ao mesmo tempo com o motorista que causou o acidente.
Um grande e afetuoso abraço!
Iris,
Creio que não assisti “Rastros de ódio” quando criança; ou pelo menos não me lembro. Mas lembro-me, também como você, de outros. E também com grande nostalgia.
Obrigado pela leitura 🙂
Artigo citado e reproduzido em http://claudiocultural.blogspot.com.br/2013/06/faroeste-e-far-leste.html
Meu irmão Luís, dois anos mais moço, íamos sempre as matineés de domingo,do cine Brasil, na rua Independência (ou rua Grande) em São Leopoldo – RS. Era o nosso prêmio semanal. Nosso pai chegava sexta-feira à noite e perguntava à mãe, se tínhamos incomodado muito durante a semana. Torcíamos por uma resposta positiva de mamãe e antegozávamos o prazer da sessão de cinema desde aquela hora.Sábado pela manhã, depois da escola, íamos ver os cartazes dos filmes no cinema.John Wayne era o seu ator predileto de meu irmão. Eu preferia Tony Curtis, Jack Lemmon e todos os lindos atores de comédias românticas. Quando cedia e íamos ver algum faroeste, sempre torcia para os índios ganharem. Eu achava uma injustiça a invasão das terras que eram dos nativos e o seu extermínio. Detestava e detesto o barulho de tiros. Torci sempre para os “ditos” bandidos e achava os mocinhos uns invasores arrogantes. Lui e eu tivemos longas discussões sobre os faroestes americanos. Depois de adulto, ele gostava dos filmes de Clint Eastwood e eu preferia Woody Allen.
Bem, esse tempo se foi. Vi “Rastros de ódio” com Lui só para pagar a pipoca e as balinhas, mas com os ouvidos tapados e os olhos fechados. Afinal, eu perdera o campeonato de bolinhas de gude da rua e devia um ou dois favores para meu irmão. Nunca gostei de faroestes, matanças de índios e violência indiscriminada.Meu irmão faleceu em 1980, em um acidente de carro, devido a um motorista bêbado. (pobre coitado, bebeu porque não tinha dinheiro para levar o filho ao médico e tinha horário e dia para entregar a sua carga)) Os nossos caminhoneiros também são tão injustiçados quanto os índios dos EUA. Continuo gostando do Woody e do cinema europeu e fico imaginando, quantas milhares de pessoas morrem indiscriminadamente no Brasil por falta de assistência médica, pela desnutrição, pela fome? Não há filme que explique isto.Como sempre, é um prazer ler os textos deste blog.
Quando pequena assistia aos filmes de Faroeste ao lado do meu pai. E não ficava pensando nos tiros e “habilidades” dos protagonistas. Mas sim pensava sobre a vida dos Apaches e dos peles amarelas, como eram chamados. O meu pai além de gostar de filmes desse gênero também lia as histórias nos livros. Enfim, ao ler o seu comentário me veio a mente, justamente os pontos que mais me prendiam. Que eram as diferenças brutais entre o PODER daqueles que dominavam com precisão os revólveres, que ora “bandidos” e ora “mocinhos”. O resgate da “donzela”, o resgate da propriedade, a bebida nos “sallows” entre outras minúcias.
Parabenizo a sua interpretação e os olhares diferenciados sobre esse gênero. Foi com imenso prazer recordar os dias de INFÂNCIA.
Iris Cristina Barbosa Cherubini