Para que serve a literatura

por Walter Praxedes*

Conta-se que no final da Segunda Guerra Mundial, quando chegaram num campo de concentração que contava com inúmeros prisioneiros inocentes, os soldados de uma das divisões das tropas aliadas surpreenderam alguns dos seus inimigos nazistas sentados e calmamente lendo uma das obras mais importantes e humanistas da literatura universal: nada menos do que Fausto, de Goethe.

A leitura daquele livro não tornava seus leitores menos culpados pelo horror que estava sendo cometido por eles próprios. Também não impedia que cada um daqueles soldados literatos cumprissem  com suas atribuições de prender, torturar e matar seus semelhantes como nenhum outro animal além do humano é capaz de fazer.

Nada mais desconfortante para os defensores da literatura como forma de humanização do que a idéia de que o homem pode combinar a satisfação estética sentida após a leitura de uma peça de Shakespeare com uma prática anti-humana, perversa e cruel.

Apesar disso, como nos ensina o crítico literário Antônio Cândido, a literatura contribui para que se confirmem em cada um de nós “…aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor”.

A literatura serve, por certo, para dar prazer e satisfação para todos, mas só os bons levam a sério suas mensagens humanistas: os demais permanecem indiferentes. Bons livros não convencem uma pessoa má a melhorar. Pode-se supor que alguém que tenha sido pago para assassinar, na sua infância tenha sido um leitor entusiasmado de Monteiro Lobato.

As mensagens humanistas dos livros só atingem as pessoas predispostas para a sua recepção. É provável que os romancistas estejam condenados a “pregar aos convertidos”, a convencer aos convencidos, como tinha o costume de escrever o sociólogo Pierre Bourdieu.

Mesmo assim, um pioneiro investigador dos segredos humanos como Freud não dispensava os conhecimentos propiciados pela literatura. Para o fundador da psicanálise “…os poetas e romancistas são aliados preciosos, e seu testemunho deve ser tido em alta estima pois eles conhecem, entre o céu e a terra, muitas coisas com as quais nossa sabedoria escolar não poderia sequer sonhar. Eles são para nós, que não passamos de homens vulgares, mestres no conhecimento da alma, pois se banham em fontes que ainda não se tornaram acessíveis à ciência.”

Com tudo isso, não deixo de pensar que após a leitura de um livro como Levantado do Chão, de Saramago, que descreve o sofrimento e a luta dos trabalhadores rurais portugueses, nenhum dirigente do Fundo Monetário Internacional deixará de impor aos países devedores as medidas econômicas que levam a fome e o sofrimento para milhões de pessoas em todo o mundo.

Talvez a literatura sirva mesmo é para convencer os convencidos a permanecerem contra todas as formas de opressão do humano. Se servem para tanto, isso já é um grande bem, pois, embora aqueles que não praticam o bem continuem difundindo o mal, não conseguirão jamais impor a idéia de que ser humano é ser apenas como são.


* Doutor em Educação pela USP e professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Maringá. Publicado na REA nº 15, agosto de 2002, disponível em http://www.espacoacademico.com.br/015/15wlap.htm

13 comentários sobre “Para que serve a literatura

  1. Concordo plenamente com o prof. Maestri. Mas claro, há de se pensar qual o tipo que essa “militância” tomaria. Em minha opinião, o simples fato de eu me dizer ateu, sem vergonha, sem temor, já é militância. Me declarando ateu, onde quer que eu esteja, já cumpro o papel que é exatamente o de encorajar outros ateus a também se declararem como tais. Notadamente, em nossa sociedade contemporânea (onde jornalistas e outros formadores de opinião dizem-se claramente contra-os-ateus) existe uma espécie de ira, sutil e sublimada, contra quem não acredite em deus ou deuses.

  2. Embora não tenha um grande conhecimento em Literatura, e o brilhante comentário da professora Gislaine Becker tenha clareado o debate, gostaria de transcrever um trecho do livro Psicologia e Literatura, de Dante Moreira Leite, que ilustra o papel transformador que a Literatura pode vir a ter:
    (…)”Em outras palavras, o romancista consegue dar, do comportamento do indivíduo, uma descrição que ainda está fora do alcance do psicólogo”.
    Em outro trecho, citando Brigid Brophy “foi sobretudo o romance que introduziu a psicologia em nossa cultura. É ao hábito de ler romances, – um hábito que o mundo antigo quase não teve – que todos nós, atualmente, devemos nossa curiosidade a respeito dos motivos uns dos outros,nossas tentativas para adivinhar e definir as suscetibilidades uns dos outros (…) Não apenas os grandes mestres, mas tambem seus sucessores (…) nos exercitam no uso da imaginação psicológica,na grande tarefa de imaginar o que significaria ser uma outra pessoa.”
    Desta forma, não é tão surpreendente que os soldados alemães estivessem lendo Fausto. O desejo da leitura tanto pode brotar no rico, como no pobre, no bom, quanto no ruim. Há, ainda, uma visão maniqueísta nesta surpresa dos soldados aliados. O bem e o mal convivem dentro de nós. Há uma tendência no mundo ocidental em “endemoniar” o inimigo. Nem todos soldados alemães eram nazistas convictos, alguns desenvolveram o que Augusto Cury classificou de psicoadaptação. No filme “O leitor”,do diretor Stephen Daldry, é bem visível este processo.

  3. Caro Professor,

    Tive acesso ao seu artigo, no qual fiz um breve comentário a respeito. Imagino, como bem escreveu o leitor Alexandre Vianna em seu comentário, que o mesmo deva ter ficado denso e quiçá com poucas explicações. Afinal, para falarmos em literatura e seus ensinamentos precisamos de muitos espaços.
    Quero me colocar à disposição, caso o professor pense ser necessário, para escrever um artigo e publicá-lo em aqui no blog, bem como na revista científica.
    De qualquer forma, deixo meu e-mail pessoal para contato:
    g.becker@fct.unl.pt
    Sou brasileira, com já disse, professora das literaturas brasileiras e portugues. Encontro-me em Portugal fazendo meu doutoramento em Ciências da Educação e seria de muito bom gosto poder contribuir.
    Obrigada,
    Gislaine Becker

    • Cara Gislaine,

      obrigado por ler e comentar o blog.
      Li seu comentário e concordo que se trata de uma contribuição importante, a qual merece espaço para maior aprofundamento (neste sentido, a observação do Alexander é mais do que pertinente). Estamos, claro, abertos à sua contribuição em forma de artigo. Este, pode ser para o blog e/ou para a revista. O que muda é o perfil: no blog publicamos artigos de curta extensão, no máximo 4 páginas; no caso da revista, os textos podem ter até 10 páginas, portanto, com maior possibilidade de aprofundamento. Avalie e, por favor, responda.

      muito obrigado.

      Abraços e tudo de bom,

      ____________________
      Antonio Ozaí da Silva
      blog: http://antoniozai.wordpress.com
      último texto publicado: A experiência da dor
      blog da REA: https://espacoacademico.wordpress.com/

  4. Um adendo em relação a literatura, podemos dizer, que ela não serve à nenhum lado partidarizado e nem a ninguém, porém, assim como na história, ela é produto de seu tempo, portnato, ela está a disposição da humanidade. O homem, conforme a sua formação e a sua identificação, pode interpretar um conteúdo literário conforme lhe convém, mesmo que não condiza com a mentalidade do autor da obra. O perigo em relação as leituras sobre os livros e principalmente, aqueles aos quais fazem parte do “Cânone Ocidental”, do Bloom [o crítico e teórico literário Harold Bloom], deve-se tomar muito cuidado ao interpretar, pois, sempre se faz necessário, antes de le-los, conhecer os contextos, quando foram produzidos. É difícil definir se a literatura de boas obras pode ou não perverter a orientação do ser humano, pois, isso depende muito do processo de formação, ao qual, o indivíduo sofreu desde a sua infância até a fase adulta. Contudo, as grandes obras literárias nacionais e internacionais são sempre citadas e fizeram a cabeça dos gênios e principais personalidades benfeitoras da humanidade e pelo simpes fato de mesmo transmitindo uma cor local, elas conseguem dialogar com outras pessoas em qualquer parte do mundo dentro do código universal. E só podem encontrar a grandeza contida nos livros, quem realmente, identificar a sua própria grandeza.

  5. Infelizmente a litratura ensinada em nossas escolas de segundo grau, só para fixar nesse ponto, não tem servido muito à formação dos nosos estudantes, nem ao prórprio prazer de ensinar a ler. Na verdade, cumpre restritos obejtivos escolares ou direciona tais conhecimentos para o vestibular. Vem aí a extorsifa obrigação de ler alguns livros, compreender textos, fazer algumas análises de escritores ed mais nada.
    Os professores não têm qualquer outra perspectiva. Eles próprios não são bons leitores. Mas sabem cobrar e se queixarem dos alunos dizendo “que são desinteressados”. Poucos escrevem alguma coisa. E quando avaliam tem limites medíocres. Acham tudo “genial”. Assim sendo, a literatura não tem cumprido o seu papel dentro das escolas. Ou quem sabe tem afastado os últimos leitores desse caminho.
    Claro, que só teremos lum futuro pouco promissor nesse sentido.

  6. Gostaria que a professora Gislaine Becker escrevesse um artigo para o blog, pois as suas considerações sobre o texto de Praxedes são muito densas para ficar apenas nos comentários.
    Parabéns, professora Becker.

  7. Que pena que, em tema tão genérico, tenha sido citado o FMI, como representação do mal. O texto passou a ter um segmento diretivo e político, coisa que não aparentava ser. A literatura, a maior invenção da civilização, é abrangente e não discrimina a ‘opressão humana’. Não é assim, ela serve aos dois lados.

  8. Caro Professor,

    Percebo perfeitamente o que dizes quanto ao fato da literatura não ser transformadora do indivíduo, da mesma forma que, seguindo o teu exemplo dado neste artigo, lembramos das leituras de Hitler e seu gosto pela arte.
    Mas, a questão não é esta. Porque bem sabemos que pessoas más e pessoas boas leem da mesma forma, ou de forma diferente, mas que por fim acabam por ler. Claro que estamos falando de leitores em literatura.
    Quero dizer com isso que se fossemos pensar desta maneira, poderíamos dizer também que as vítimas do Holocausto também liam e nem por isso estavam na condição de exterminadores, mas na condição de exterminados.
    A grande diferença, imagino, esteja justamente na formação desse indivíduo. Formação esta que devemos levar em consideração todo contexto histórico. E a consideração que a literatura é formadora do individuo de forma separada é no mínimo ingênua ou defendida por uma minoria que, sinceramente, não considera os fatos básicos da vida, como por exemplo, o dia a dia de nosso aluno, o que se passa dentro e fora da sua casa.
    Agora, como diz o próprio Antonio Candido, citado em teu artigo, em A literatura e a formação do homem (CANDIDO, 1972:77-92), essa caracterização é denominada de humanização, papel esse que para nós é o portal que vai dar passagem ao encontro do homem consigo, pois bem citando o autor, a primeira função desse conjunto humanizador da literatura, entre muitos dos seus conceitos e funções, está voltada para a ação psicológica da necessidade nata que o homem tem em fantasiar com práticas do seu dia a dia. Práticas exercidas que são consideradas marginais as realidades do ser humano, entretanto é por meio dessas práticas vividas como músicas, filmes, mini-séries, fotografias, novelas, livros que englobam os mais diversos temas universais como a guerra, a paz, o amor, os sonhos, entre outros, que o homem cria uma plataforma de entendimento que vai ligá-lo ao mundo e permitir a concretização de seus objetivos.
    Tendo a literatura que sempre vai buscar na realidade o seu ponto de partida, porque a mesma avança primeiramente sempre de uma realidade para chegar à ficção , temos a segunda sub-função da literatura, dentro desse conjunto humanizador, que é denominada formadora, justamente por fazer a fusão da necessidade de fantasiar e a realidade do indivíduo. Logo, como diz o próprio autor (CANDIDO, 1972:77-92), a literatura acaba por ser um meio de educação, dentro da formação do indivíduo, mas não dentro de uma educação comum, com práticas metodológicas afastadas da realidade estudantil.
    E por fim, não me alongando mais, imagino que a literatura com toda a sua riqueza e sendo bem ministrada, tende, com certeza absoluta em formar o homem. Agora, não podemos querer, apesar de conhecer inúmeros casos, que por si ela trabalhe sozinha.
    Logo, caro colega, esse conceito isolado de que a literatura forma o indivíduo unicamente por si, deve ter uma reflexão maior, porque na sua grandiosidade há mil fatores que contribuem para a formação do sujeito e inclusive para a transformação do mesmo.
    Quanto a Saramago, bem sabemos que toda a sua obra está voltada para retrato do povo português e que traz consigo o relato de um homem que não somente presenciou todo esse contexto, mas que foi atuante e generoso em registrar.

    Gislaine Becker
    Professora das Literaturas brasileira e portuguesa, acadêmica de Doutoramento em Ciências da Educação pela Faculdade de Tecnologia e Ciências da Universidade Nova de Lisboa.

  9. Realmente a literatura serve pra quem sabe interpretar uma leitura, quem não sabe fazê-lo pode inverter por inteiro um assunto e assim não dar a devida importância, parabéns pelo texto, vou encaminhá-lo para minha escola.

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