Melancolia, Lars von Trier e a humanidade à beira do abismo

wellenHENRIQUE WELLEN*

Um fato recente escandalizou o ambiente cinematográfico mundial. Trata-se da polêmica resposta que Lars von Trier, diretor do filme Melancolia, deu na entrevista coletiva, durante o Festival de Cannes. Ao ser questionado sobre Hitler, o diretor dinamarquês ingressou em um circunlóquio que chocou não apenas os jornalistas, mas envergonhou parte do elenco desse filme. Com um misto de brincadeira e provocação, o diretor, ao referir-se às últimas horas de vida de Hitler no seu bünker, além de afirmar que entendia e até simpatizava com o principal expoente do holocausto, se enrolou ao falar sobre o anti-semitismo, balbuciando até mesmo que era um nazista. Em seguida, sua tentativa de se explicar melhor para reverter essa cena constrangedora, não evitou um desfecho punitivo: o diretor foi alvo de várias críticas que redundaram na sua expulsão do festival de Cannes, sendo intitulado de persona non grata.

A partir de então se estabeleceu um mal estar não apenas em torno do filme Melancolia, mas sobre toda a obra de Lars von Trier, que ficou envolvida por uma névoa de polêmica e censura. Seguindo um rito comum para casos desse tipo, em que se almeja menos uma análise sobre as causas dessa advertência e mais uma disputa superficial entre duas antinomias, de um lado, buscar banir o que provoca distúrbio na ordem estabelecida, e de outro, fazer a apologia daquilo que é censurado, apenas pelo fato de ser censurado (sem apreender sua fecundidade e potencialidade críticas), o mais importante desse caso ficou desvalorizado. Essa polêmica obscureceu a análise sobre o mérito estético do filme e, especialmente, sobre a concepção de mundo que ele aporta, a função social por ele exercida e a sua relação com a postura ideológica do seu projetista.

Ainda que possa parecer um lugar comum na análise estética desse complexo artístico, é fato que o cinema (principalmente esse tipo de filme) é a arte do diretor. É o diretor que conduz o sentido central dos filmes, estando envolvido em várias partes do seu processo de produção, desde a escolha do elenco até a edição e montagem das cenas. E, quando se analisa a filmografia de von Trier, isso fica ainda mais explícito, pois, especialmente nos seus filmes mais recentes, como Anticristo, Manderlay e Dogville, tem-se a incorporação não de um roteiro formal, mas de uma tese, em que o diretor conduz o expectador, a partir de um conjunto de argumentos e contradições, a uma grande provocação, sem lhe prover um terreno confiável para uma conclusão segura. Não obstante, tal fato se amplia no caso de Melancolia,  uma vez que von Trier não foi somente o diretor do filme, mas também recebe os créditos como escritor. E, repetindo suas obras passadas, também nesse caso o diretor centra esforços na instigação ao debate e à reflexão, por mais inconseqüentes que sejam.

Mesmo que a temática utilizada nesse filme – a destruição do planeta Terra – seja um argumento bastante repisado no cinema, a narrativa dos seus acontecimentos, consubstanciada por enfoques desafiadores e tramas intimistas, produz um ineditismo na sua figuração. Principalmente porque, diferentemente do padrão argumentativo de filmes desse tipo (intitulados de “disaster movie”), em Melancolia não existe uma consensual luta dos personagens pela sua sobrevivência. A batalha pela preservação da vida contra a destruição iminente, que aparece, costumeiramente, como o desfecho e o objetivo dos personagens dessa categoria de filmes é, aqui, polemicamente transformada em meio para expressar outro problema mais complexo: será que, diante das condições existenciais, a defesa da vida humana é realmente importante?

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No meio dessas lutas, de preservação da sobrevivência humana subordinada por um embate existencialista, narram-se episódios da vida de Justine (Kirsten Dunst), seja, no primeiro momento, na superficial e aristocrática cerimônia de casamento com Michael (Alexander Skargärd), seja, em seguida, detalhando elementos da sua relação familiar com a irmã Claire (Charlotte Gainsbourg), o cunhado John (Kiefer Sutherland) e o sobrinho Léo (Cameron Spurr). É assentado nesse problema existencial que von Trier, utilizando-se das destacadas atuações de Dunst e de Gainsbourg (que polarizam as posturas ideológicas diante da destruição), mais uma vez, apresentando posturas e argumentos contraditórios, se propõe a provocar o seu espectador sobre temas polêmicos.

Melancolia se inicia com um belo e inovador prólogo (ainda que esse recurso tenha sido usado no seu filme anterior): durante oito minutos, várias imagens são apresentadas em câmera lenta, ao som da ópera Tristão e Isolda, do músico alemão Richard Wagner. Intercaladas pela figura trágica do planeta destruidor se aproximando da Terra, apresentam-se vários quadros, desde paisagens naturais, como florestas, lagos, pássaros caindo do céu ou um cavalo desabando na grama, até atividades dos principais personagens, como Justine, vestida de noiva, caindo na água, ou a tentativa de fuga de Claire com seu filho Léo. Com o desenrolar do filme, quando se observa o aparecimento dessas imagens, dessa vez historicamente e socialmente contextualizadas, tem-se a impressão de que essa cena inicial expressa uma síntese estética e narrativa.

Em seguida, tem-se inicio à parte I, intitulada de “Justine”, que apresenta os acontecimentos da cerimônia de casamento de Justine e Michael, desde as patéticas manobras da limusine dos noivos em uma apertada estrada rural, até as atitudes fluidas e melancólicas da noiva para com o noivo, familiares e convidados. Se, na cena da limusine, o diretor parece  brincar com as inferioridades técnicas e luxuosas diante das determinações da natureza, com o desenrolar da cerimônia do casamento, o comportamento da noiva serve para transparecer um mal estar diante da artificialidade desse evento e de práticas sociais ausentes de autenticidade. Por isso que, fugindo desse mundo sem sentidos, Justine encontra regaço apenas nas crianças, sendo tratada carinhosamente de “Tia Invencível” pelo seu sobrinho, ou nos animais, quando amplia o atraso da cerimônia de casamento para visitar seu cavalo favorito. Não obstante, adotando uma mistura errática de indiferença e melancolia, Justine pode ser relacionada como uma crítica social, como a única pessoa realmente portadora de um sentido autêntico de vida, ainda que isso se traduza em arrogância e sofrimento para os outros. O ponto máximo dessa postura ocorre quando ela enfrenta o seu patrão, acusando-o de egoísta e desprezível.

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Como um alter ego do diretor, Justine serve para estabelecer uma crítica à reificação, figurando essa cerimônia como um espetáculo artificial e sem sentidos que, voltando-se para a ostentação e o cumprimento de regras superficiais, distancia-se das qualidades autênticas. Serve como exemplo a conversa da noiva com o seu cunhado John, que se vangloria de ter gastado muito dinheiro com essa cerimônia e de ter um campo de golfe com 18 buracos. Contudo, esse posicionamento crítico não supera o nível fenomênico dos eventos ocorridos, relevando supostas qualidades superiores da heroína em detrimento dos outros personagens, tratados como incapazes de romper com essa artificialidade. E, com a tendência não somente de se limitar à constatação desse fato, mas de tratá-lo como existencial e, portanto, integrante da essência humana, a crítica distancia-se de um lastro histórico e social e se torna individualista e irracional.

Nesse sentido, o sentimento de melancolia é apresentado menos como um distúrbio mental e mais como uma marca da autenticidade humana, retomando-se, em outros termos e tempos, o romantismo como crítica social. Nessa ideologia, que analisa o ethos burguês como marca da essência humana, faz-se desaparecer o horizonte histórico do futuro e, com isso, a construção coletiva de um projeto social de emancipação humana, que tornaria possível a reciprocidade entre indivíduo e gênero humano, é abandonada diante do abismo. Além disso, como esse romantismo vem mesclado com o misticismo e o niilismo, abre-se o caminho tanto para a resignação como para a hierarquização social. Diante do abismo e da melancolia, superiores seriam aqueles que se resignam ou que se regozijam. Esse é o caso de Justine.

A morte aparece como um sentido para uma vida sem sentido e, diante da sua certeza, caberia ao ser humano não apenas aceitá-la, mas também cultuá-la. Mesmo que possuindo contornos e direções diversas, destaca-se, assim, uma temática que nos leva à fala de von Trier em Cannes, pela qual ele foi banido desse festival. Fazendo uma relação com o nosso ensaio anterior, sobre o filme Mefisto, que trata do contexto social e cultural da ascensão do nazismo na Alemanha, poderíamos pensar em Melancolia como uma prequela para o filme de István Szábo. Isso porque a difusão do irracionalismo, pautado pela destruição da humanidade como possibilidade de criação de um sentido autêntico para a vida, foi um dos ingredientes utilizados para fermentar a instituição desse poder na Alemanha.

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Contudo, essa análise sobre Melancolia só seria inequívoca caso não existissem personagens antagônicos e, especialmente, se essa postura inicial de Justine não se tornasse mais complexa e fosse problematizada ao longo do filme. É isso que ocorre a partir dos momentos finais e decisivos do filme, integrantes da sua segunda parte, intitulada de “Claire”. Num momento posterior indefinido, mas temporalmente próximo à frustrada cerimônia de casamento, ocorre o retorno de Justine, em estado de fragilidade física e mental, à casa da sua irmã. Se, de um lado ela é recebida com aspereza pelo seu cunhado, porque foi obrigado a pagar a sua corrida de táxi, por outro, recebe todo o carinho da sua irmã, que se dedica à sua recuperação. Contudo, o grande motivo da sua melhora não deriva diretamente da ajuda da irmã, pois, a partir do momento que toma conhecimento da aproximação da destruição da Terra, suas forças vão se renovando e ela passa a ter um ânimo superior, inclusive em oposição a outros personagens, como seu cunhado, que vai se tornando mais fraco e covarde. Mas, se sua euforia cresce à medida que a humanidade se aproxima do abismo, a postura da sua irmã Claire expressa um contraponto humanístico ao seu irracionalismo.

Ainda que seja bastante sutil, é possível perceber a existência de uma inflexão não somente na narrativa de Melancolia, mas também na alteração do modelo de comportamento indicado diante dessa situação. Esse movimento ocorre em dois momentos principais: primeiramente, no diálogo entre Claire e Justine sobre a destruição da Terra e, depois, na última cena do filme. O primeiro ato marca o estabelecimento, ainda que sob uma desfavorável correlação de forças, do amor materno como um contraponto humanístico à indiferença e ao niilismo: mesmo vencida pelos argumentos da irmã, que sentencia a maldade da Terra e a sua necessária destruição, seu desenlace é marcado pelo carinhoso abraço entre mãe e filho.

Já na cena final de Melancolia, em que esse antagonismo dos personagens é expresso por uma elevada dramaticidade, se, no início, Justine tripudia com indiferença perante a luta da irmã para salvar a vida do filho, no momento derradeiro demonstra compaixão para com o sobrinho, estimulando uma fantasia que imagina uma proteção contra a destruição, para, assim, tranqüilizar a criança, produzindo um laivo de esperança. Mas, seguindo o embate citado anteriormente, não se trata da esperança de que os personagens irão sobreviver à destruição da Terra, mas de uma esperança subjetiva, de que a mudança no interior do ser humano faz-se possível, uma vez que, mesmo diante do abismo, pode-se despertar qualidades de delicadeza e compaixão.

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Quando inserido na sua filmografia, Melancolia marca um grau superior, mais explícito, do espiral filosófico que perpassa a mente de Lars von Trier, que representa uma amálgama de provações e reflexões sobre o futuro da humanidade, com uma postura resignada e, em alguns momentos, politicamente reacionária. Se, de um lado, pretende expor temas e circunstâncias que precisam ser criticadas e superadas socialmente, por outro, chega a tratar esses episódios de maneira entificada, como resultantes da própria essência humana e, assim, insuperáveis. Apela para a análise social de temas ainda polêmicos, sem acrescer elementos emancipadores no seu horizonte. Como não analisa as causas específicas para os problemas vividos pelos seus personagens, tratando-os de maneira fluída e existencial, a contradição narrativa que perpassa seus filmes resulta numa outra mais perigosa.

Mas, pelo desfecho de Melancolia, é possível admitir que, ainda que flerte abertamente com o niilismo, com a inexistência de sentidos para a vida, transformando os atos humanos em práticas patéticas e, nesse sentido, desejando a chegada do abismo, o diretor não se entrega totalmente a essa postura. Essa posição, derivada menos de sentimentos de covardia para demonstrar algumas idéias reacionárias, e mais pela possibilidade de uma envergonhada admiração por práticas humanistas (ainda que pequenas, singulares e cotidianas), permite, mesmo em momentos minúsculos, a figuração da arte humanista, com algumas brilhantes apresentações. Se esses momentos são claramente minoritários dentro da sua obra, a sua representação salta em força dramática, demonstrando que, mesmo à beira do abismo, pode-se exaltar elementos de solidariedade humana.

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Ficha Técnica

Título: Melancolia
Título original: Melancholia
País:  França, Dinamarca, Suécia, Alemanha
Ano: 2011
Duração: 129 minutos
Direção: Lars von Trier


* HENRIQUE WELLEN é Doutor em Serviço Social (UFRJ) e professor da Escola de Serviço Social da UFRJ.

9 comentários sobre “Melancolia, Lars von Trier e a humanidade à beira do abismo

  1. Muito boa a sua análise com pontuações muito relevantes, pude recordar e pensar ainda mais nas partes que me chamaram a atenção. Um ponto que não pude deixar de reparar são as terminologias que vejo muito nos estudos de Serviço Social e do próprio Marx ao falar de reificação, emancipação humana. Outro ponto é o apontamento da morte como saída, me preocupa muito essa falta de sentido em que estamos vivendo, é preciso compreender suas origens para não ficar a deriva.

  2. Lindo, lindo, lindo. Já havia gostado de Ninfomaníaca e a atriz e o ator principais de lá reaparecem, muitíssimo bem! Além disso, as cenas lentas iniciais, o Wagner constante, a lentidão são memoráveis. Suficientes para apaixonar qualquer um por este diretor. E Kirsten assumiu o papel principal da depressiva ostensivamente bem. Às vezes perde-se o fôlego pela beleza do filme todo!!

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