Até leio autoras mulheres, mas não compartilho o conhecimento delas ou com elas

CAMILA CAROLINA H. GALETTI*

NENHUMA A MENOS – Ato de repúdio ao feminicídio – Maringá (PR), 01/02/2020. (Foto: Antonio Ozaí da Silva)

Com certa frequência, ao participar de debates que pautam o feminismo, aparece o seguinte questionamento: qual é o lugar dos homens na luta feminista? Tal questão gera alvoroço e o fio condutor da controvérsia, na maioria das vezes, encontra-se no conceito de representatividade ou no que tange ao lugar de fala.

A resposta pode ser simples: as mulheres precisam ser protagonistas da luta. Já os homens, devem usar seus espaços de privilégios para visibilizar atitudes machistas, sexistas e rever seus privilégios. Afinal, nós mulheres não queremos lutar para sempre contra o machismo e temos como horizonte o fim das assimetrias de gênero. Essa luta, porém, não deve andar só, pois, pelo menos sob a perspectiva que compartilho, não há possibilidade de emancipar mulheres em uma sociedade racista e capitalista.

bell hooks, em seu livro O feminismo é para todo mundo (2015), aponta que os homens têm medo de abrir mão dos benefícios proporcionados pelo patriarcado pois rever privilégios demanda, e muito. Então, não há muito empenho por parte dos homens para que a estrutura mude, os limites estão estabelecidos e mantê-los é mais vantajoso ao sexo masculino. O machismo ainda existe e passa muito bem.

O primeiro ponto que gostaria de destacar é que raramente homens se interessam por essa temática ou questionam como acessar o campo dos feminismos sem se perguntarem o que devem fazer, ou como não devem agir. Obviamente, não posso generalizar, porém, a realidade fala por si só e ficam evidentes ao observarmos as barreiras enfrentadas pelas mulheres nas mais diversas áreas.

O reducionismo ou essencialismo que nos acompanha, manifestado, por exemplo, no fato do trabalho reprodutivo ser destinado às mulheres, evidencia algumas das barreiras que encontramos cotidianamente.  Esses impasses foram evidenciados com mais potência no contexto de pandemia, quando mulheres relataram a sobrecarga física, psicológica e emocional, para além do que já vivenciavam. O resultado tem sido uma baixa produtividade acadêmica por motivos que são óbvios, na medida em que sobre as suas costas deságua todo o trabalho doméstico e reprodutivo.

Gostaria de tratar sobre um incômodo que me acompanha desde quando eu iniciei os estudos nas Ciências Sociais, em meados de 2010.

Àquela época, não sabia o que era feminismo, muito menos me sentia apta para mobilizar os conceitos que fazem alusão ao mundo que é a teoria feminista. Ao iniciar os estudos num curso de humanas e ter contato com a literatura feminista, consegui dar nome a diversos incômodos, violências que sofri e sofro ou que vejo mulheres ao meu redor sofrerem. Pude compreender mais à fundo as assimetrias de gênero nos mais diversos aspectos. No entanto, teve uma questão que sobressaiu disso tudo, a saber, como meus colegas, homens em sua maioria, tratavam a produtividade feminina sobre alguns temas que não fazem parte do mundo da epistemologia feminista.

Certa vez, em uma semana acadêmica, um veterano por quem tinha muita admiração estava procurando a sala em que determinado Grupo de Trabalho, do qual não me recordo, estava acontecendo. Nesse mesmo dia, eu iria apresentar minha pesquisa de Iniciação Científica no GT de Feminismos. Ele me interpelou e perguntou: é aqui que tal GT está ocorrendo? Eu respondi que não, que ali era o grupo que iria discutir feminismos. Ele riu. Fez um gesto claro de desmerecimento e seguiu sem falar nada.

Eu fiquei sem reação e questionei se, de fato, a minha interpretação condizia com a mensagem passada, mas me senti deslegitimada. A partir daquele dia, a minha ótica sobre aquele indivíduo se modificou. Eu parei de admirá-lo e dentro da minha limitação de caloura, pude ver que o discurso dele não se alinhava com a práxis – soa como um exemplo juvenil, mas, é preciso destacar as deslegitimações vivenciadas cotidianamente.

Já pude presenciar espaços nos quais mulheres estavam discutindo temas que não tinham nenhuma ligação com teorias feministas e era nítido o incômodo de certos pesquisadores homens com o fato de estarem adentrando um terreno que, talvez, pela ótica deles embasado na perspectiva patriarcal que permeia nossa sociedade, não é destinado à pesquisadoras mulheres. Isso se manifestava em interpelações agressivas ou no descrédito à fala daquelas pesquisadoras. Obviamente, não posso generalizar, mas infelizmente isso é muito comum.

Segundo a Academia Brasileira de Letras, há 27 anos mulheres são majoritárias entre os que cursam ensino superior e representam 49% das bolsistas do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), a principal agência de fomento à pesquisa no Brasil. Mas, ao longo da carreira, vão sendo “expulsas” do universo acadêmico, pelo fenômeno que é conhecido como efeito tesoura. Além do fato de que a distribuição entre os cursos não é feita de forma homogênea: nos cursos de exatas, o percentual de mulheres ainda é muito baixo.

O CNPq nunca teve uma presidente em 66 anos de existência. Dificilmente vemos mulheres sendo reitoras das Universidades Públicas. Ou seja, as instâncias de poder estão majoritariamente nas mãos dos homens e isso tem reflexo substancial na representatividade feminina nesses espaços e nas pautas que são debatidas. Esse fenômeno aparece, por exemplo, na falta de flexibilidade com pesquisadoras que engravidam no processo de escrita da dissertação ou tese, ou no fato de que não se problematizaram com mais afinco as especificidades de ser pesquisadora em uma realidade em que a ordem patriarcal ainda é a tônica das relações.

Face ao exposto, questiono se os homens realmente escutam mulheres sobre qualquer tema ou só no que diz respeito ao feminismo e questões de gênero.  Quantas mulheres você, que é homem, já convidou para produzir em parceria pela admiração? Cabe ressaltar que não vale convites que tenham como finalidade envolvimento afetivo ou sexual. Você já mapeou quantas mulheres se debruçam sobre a temática que você estuda? Tem aberto diálogo com tais mulheres? Você consome literatura produzida por mulheres? Na bibliografia de sua pesquisa, há uma discrepância entre os gêneros dos autores/autoras? Quando questiona uma pesquisadora sempre adota um tom professoral no diálogo?

Se a resposta for não para algumas dessas questões anteriores, espero que o mal-estar de alguma forma tenha lhe invadido. O fato é que a produtividade sofre as consequências da sociabilidade machista, e reverter isso demanda esforço masculino.

Porém, aqui, a tentativa não foi de acusar, mas sim de praticar o que Glória Anzaldúa (2000) traduz nos seguintes escritos dela:

Por que sou levada a escrever? Porque a escrita me salva da complacência que me amedronta. Porque não tenho escolha. Porque devo manter vivo o espírito de minha revolta e a mim mesma também. Porque o mundo que crio na escrita compensa o que o mundo real não me dá. No escrever coloco ordem no mundo, coloco nele uma alça para poder segurá-lo.

Escrevo porque a vida não aplaca meus apetites e minha fome. Escrevo para registrar o que os outros apagam quando falo, para reescrever as histórias mal escritas sobre mim, sobre você. Para me tornar mais íntima comigo mesma e consigo. Para me descobrir, preservar-me, construir-me, alcançar autonomia. Para desfazer os mitos de que sou uma profetisa louca ou uma pobre alma sofredora. Para me convencer de que tenho valor e que o que tenho para dizer não é um monte de merda. Para mostrar que eu posso e que eu escreverei, sem me importar com as advertências contrárias (ANZALDÚA, 2000).

*Esse texto é resultado de um incômodo coletivo, compartilhado com diversas queridas amigas acadêmicas que sofreram/sofrem algum tipo de machismo ao desempenharem a função de pesquisadoras.

* CAMILA CAROLINA H. GALETTI é Graduada em Ciências Sociais (UEM), mestra e doutoranda em Sociologia Política (UnB).

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