Feliz Ano Velho… e Novo!

por Antonio Ozaí da Silva*

Talvez o tempo seja como Saturno, o deus da mitologia romana representado por Goya, que devora seus próprios filhos.

“O tempo é aquele que engendra, o pai absoluto que traz à existência para depois destruir sua prole”. **


“Matamos o tempo; o tempo nos enterra”, sentenciou Machado de Assis em Memórias Póstumas de Brás Cubas. O tempo passa, o tempo nos mata. Como afirmou o poeta, “O tempo não pára”. Mas o ser humano, em sua sabedoria quase divina, considerou mais apropriado convencionar que, em certos períodos do ciclo da vida, o tempo passado, passou. C’ est fini! Recomeça um novo tempo, o novo ano.

O calendário é uma invenção humana. Não obstante, em especial neste período, agimos como se o tempo fosse naturalmente seccionado em dias, meses, anos… Fez-se noite, fez-se o dia e os instrumentos para contá-los. O tempo, contado e calculado, surge, então, como obra da natureza ou de uma entidade sobrenatural.

Terminamos por aceitar apenas em parte que “o tempo não pára”. Sim, sabemos que o tempo nos consome, mas é precisamente por sabê-lo que precisamos estabelecer uma pausa e considerar que uma era terminou (o ano velho) e recomeçou outra (o ano novo). Precisamos acreditar. Alimentamos a ilusão do eterno recomeço – até que a morte nos alcance.

É esta necessidade que nos impele a romper os diques da razão e a dar vazão aos sentimentos, emoções e tudo o que significa comemorar o ANO NOVO. Ainda que a razão nos grite que o tempo segue inexoravelmente a sua marcha, agimos e sentimos como se realmente iniciássemos um novo período em nossas vidas. Muitas vezes, procedemos até mesmo como se enterrássemos o “eu” pertinente ao “ano velho”, como se este fosse “outro eu” e não aquele que somos na embriaguez da festança. E por vários dias, mesmo após a ressaca, sinceramente acreditamos que estamos numa nova fase da vida. Depois, a rotina enfraquece esta sensação e então o ano se torna longo e cansativo. Torna-se velho antes que termine. E, em nosso cansaço, ansiamos por mais um ano novo. E tudo se repete…

Porém, em qualquer tempo, o “outro eu”, que gostaríamos de abandonar no “ano passado”, teima em se fazer presente neste ano. Ainda que não queiramos, também somos o resultado do passar do tempo. Não podemos esquecer a nós mesmos no tempo que passou, como se o anúncio do novo ano representasse uma espécie de acerto de contas.

Mesmo assim, fazemos planos. Transmitimos nosso desejo aos amigos e aos que amamos e, especialmente a nós mesmos, que neste ano tudo será diferente. Desfazemos-nos de determinados objetos, procuramos dar termo às pendências e limpamos as gavetas, as reais e simbólicas. E ainda que tenhamos que carregar as dívidas, nos prometemos, e aos outros, que terão um tratamento diferenciado e que, neste ano, nos livraremos delas.

Fazemos vistas grossa à dialética da vida. Teimamos em cindir o tempo passado e presente e idealizamos o “ano novo” como o início de um tempo capaz de realizarmos o “eu” que almejamos. Na busca de forças para resistir às agruras que a realidade impõe, necessitamos ardentemente da sensação, ainda que por breve momento, de que superamos as misérias do tempo que passou. Mas estas nos perseguem e impregnam o nosso ser, o nosso tempo. Elas permanecem à espreita e se introduzem em nossas vidas a despeito dos nossos desejos e felicitações mútuas de um FELIZ ANO NOVO! As rupturas não ocorrem apenas pela vontade idealista e formalidades próprias desta fase. A nova realidade contém a velha…

Contudo, nos lixamos para a dialética. É uma necessidade psicológica. Precisamos, ao menos, atenuar o sofrimento. São trincheiras mentais que nos ajudam a suportar a realidade. Construímos esta noção do tempo como um anteparo à angustia do viver. É-nos difícil admitir que o “ano novo” indica apenas que o ciclo da vida se aproxima do seu desfecho. A natureza tem o seu tempo, e este, este sim, não pára. Ele passa e nos enterra…

Feliz Ano Velho… e Novo!


* ANTONIO OZAÍ DA SILVA é docente na Universidade Estadual de Maringá.

Blog: http://antoniozai.wordpress.com

Este texto foi publicado em http://antonio-ozai.blogspot.com, em 05 de janeiro de 2008.

** COLI, Jorge. O sono da razão produz monstros. In: NOVAES, Adauto (Org.) A Crise da Razão. São Paulo: Companhia das Letras; Brasília, DF: Ministério da Cultura; Rio de Janeiro: Fundação Nacional de Arte, 1996, p. 307.

25 comentários sobre “Feliz Ano Velho… e Novo!

  1. Olá amigo,

    Parabéns pela sua reflexão! Muito pertinente à nossa realidade. O sábio Salomão expressou de forma bela e poética sobre o Tempo:
    “Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu.
    Há tempo de nascer, e tempo de morrer; tempo de plantar, e tempo de arrancar o que se plantou;
    Tempo de matar, e tempo de curar; tempo de derrubar, e tempo de edificar;
    Tempo de chorar, e tempo de rir; tempo de prantear, e tempo de dançar;
    Tempo de espalhar pedras, e tempo de ajuntar pedras; tempo de abraçar, e tempo de afastar-se de abraçar;
    Tempo de buscar, e tempo de perder; tempo de guardar, e tempo de lançar fora;
    Tempo de rasgar, e tempo de coser; tempo de estar calado, e tempo de falar;
    Tempo de amar, e tempo de odiar; tempo de guerra, e tempo de paz”.
    Eclesiaste 03

  2. Caro Ozaí,
    Nem de perto sou o que se chamaria uma estudiosa de Nietzsche. Participei de um grupo de estudos na pós e no final escrevi um pequeno trabalho sobre a relação do filósofo com Wagner. O que me fascina em Nietzsche é, entre outras coisas, a paixão pela música, pelas artes e, permeando tudo isso, a passagem do tempo e o valor que dá ao riso.
    Na verdade, foi seu texto que me trouxe Nietzsche, falando de não esquecer a nós mesmos – fez eco ao “tornar-se o que se é”.
    “Sobre a verdade e a mentira no sentido extra-moral” é um texto que nunca “acabei” de ler (volta e meia leio de novo – e volto a achar deslumbrante), e “Para a genealogia da moral” (em que afirma, por exemplo, que “definível e´somente aquilo que não tem história”… e que o “homem é um caminho, não um alvo” – não tem a ver com algo do seu tempo?)
    Dia desses a gente conversa mais.
    Um abraço,
    Viviane

  3. Excelente texto. Ralmente nos deixamos consumir e nos consumimos a nós mesmos de todas as formas. Assim, vemos buscando analgésicos sentimentais para cobrir o que não fizemos acontecer. Já escrevitexto semelhante. Fando das mesmas coisas e me prometendo mundos e fundos. Mas ao chegar o Ano Novo, tudo se foi para o ralo e continuamos os mesmos. A dialética é messmo muito dura de ser admitida. Não dá prazer. Ela apenas nos coloca diante de algo que, no fundo, no fundo, até já sabemos, mas não tem graça viver sob os seus ditames. O outro lado pelo menos nos dá um certo alento.
    Tenho lido os seus texto com imenso prazer e divulgdo entre os que merecem lê-lo.

    Por falar nisso, Feliz Ano Novo

    • José,

      muito obrigado.
      Suas palavras me fizeram lembrar o romance “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley. O ser humano acalenta o sonho da vida eterna – tanto do ponto de vista científico, a descoberta de meios para prolongar a vida, quanto no aspecto religioso. Também me fez lembrar a ironia do grande Jonathan Swift, em “As viagens de Gulliver” (em certo trecho ele relata personagens que não morrem, mas longe disso parecer positivo).

      Gostaria de ler o seu texto. Por favor, envie para o meu email: antoniozai@gmail.com

      Abraços, tudo de bom e Feliz Ano Novo,

  4. Ele passa e nos enterra…

    Mas algumas pessoas nasceram neste início de ano. E nem todos nascem apenas para morrer. A história humana testemunha isso.

    abraços

    • Obrigado…
      e assim é o ciclo da vida: nascemos e começamos a morrer… é verdade, outros nascem (no momento em que escrevo quantas vidas não foram geradas?), mas não sobrevieram ao tempo. No mais, não entendi onde e como que “a história humana testemunha” o contrário, isto é, que o corpo sobrevive ao tempo.

      Abraços e tudo de bom,

  5. O tempo do eu subjetivo; o desejo de sentir um novo recomeço, mais belo em meio a tantas incertezas; a ilusão de que a mudança possa se inscrever no tempo curto…
    Só muita sensibilidade e inteligência afetuosa poderia inventariar tudo isso em tão poucas linhas, como um Machado tendo de ser denso e intenso para caber numa curta coluna vespertina…
    Com maestria, nosso Ozaí mostra algumas filigranas que um insensível braudeliano pensaria ser apenas “espuma”.
    Parabéns, caro Ozaí!…

  6. Adorei seu texto Ozaí ! Você consegue expressar em palavras exatamente o que sinto com o passar dos anos e a rapidez que isso está acontecendo….deixando de lado essas novas propostas de recomeçar com o Ano Novo, o que sinto mesmo é que cada ano estamos morrendo um pouco mais e o desfecho todos nós sabemos…
    abraços
    Alcione Jurigan

    • Alcione,

      muito obrigado.
      Sim, é verdade: sabemos o desenlace… o mais importante, a meu ver, é viver a vida. Outro dia me perguntaram: quais seus planos para 2010? Respondi: permanecer vivo.
      Estou aberto às críticas, sugestões e contribuições.

      abraços e tudo de bom,

  7. Sinto em desapontá-los mas eu não sou otimista assim, a virada é apenas uma tentativa , frustrada, do humano driblar a morte, contudo a rotina nos faz cair na real. Nesse sentido , feliz rotina.

    • Cleber,

      muito obrigado.
      Não entendi a quem vc desapontou!
      Por outro lado, não acho que seja uma tentativa “frustrada”: esse ritual cumpre uma função e o ser humano também precisa de ilusões – até mesmo para enfrentar a realidade com mais força.

      Abraços e tudo de bom,

  8. Professor, sempre gosto muito de seus textos e da linha teórica que os embasa.
    Concordo com toda sua análise e acrescentaria, com sua permissão, que o advento da “racionalidade” capitalista e sua necessidade de “contar”, “comparar”, “medir” para estabelecer “valor” acabará por cobrar imposto sobre o ar que respiramos.
    Um abraço.
    Francisco Pucci.

    • Francisco,

      muito obrigado.
      É verdade, em nossa sociedade tudo é “valor”, “valor de troca” e, portanto, mercadoria. De certa forma, o ar também já foi mercantilizado… só falta mesmo, como vc diz, “cobrar impostos”.

      Abraços e tudo de bom,

  9. O papel do pensamento é desmistificar o mítico, aquilo que busca maquiar o real. Agora precisamos agir sobre nossas manifestações.

  10. É isso mesmo, Ozaí. Nossa vida é feita de interrupções e o calendário funciona como uma espécie de controle na corda bamba do tempo – com sua absoluta contingência também pode conviver a ‘esperança equilibrista’.
    Será que é possível tentar levar adiante uma proposta de Nietzsche? A de fazer do tempo não um inimigo, mas um companheiro, caminhar com ele, passar com ele? Querer para frente e para trás?
    Acho que você respondeu no final.
    Feliz ano velho e novo!
    grande abraço,
    Viviane

    • Viviane,

      muito obrigado.
      Gostei da sua reflexão a partir de Nietzche. Não é um autor que tenha o hábito de ler, por isso agradeço por chamar a atenção para essa outra possibilidade de encarar o tempo. Acho mesmo que é uma boa respota: aceitar o inexorável e tentar viver da melhor forma possível enquanto nos é permitido fazê-lo. Vc é uma estudiosa do autor? Para um leigo como eu que queira ler algo dele, por onde começar? Qual sua sugestão?

      Abraços e tudo de bom,

  11. Gostei do texto. E cada ano que vai nos deixa um indicativo para planejarmos o ano novo sempre com esperança de um mundo melhor e são esses momentos de reflexão que nos sentimos livres para viver.
    Parabéns pelo texto.

  12. Adoro esse espaço, essa reflexão acerca do Ano Novo nos faz refletir como o ser humano tem dificuldade de mudar de fato, a zona de conforto nos aprisiona, falar das coisas comuns é mais fácil para o homem comum, isso não implica mudanças comportamentais.

    Um abraço,

    Luciene

Deixe um comentário