“Roubado é mais gostoso”: Itaquera e a Copa dos Bons Amigos

por WELLINGTON FONTES MENEZES*

 

1. A farra com o erário

O espetáculo perdulário da promoção da Copa do Mundo no Brasil beira a completa barbárie. Na última quinta-feira, 20 de outubro, uma verdadeira carreata do oportunismo político ocupou o terreno baldio ao lado da Estação Itaquera do metrô. Como se fosse para bater uma “pelada” a “rapaziada” se animou tanto que inclusive estava presente o ex-craque do futebol nacional, o neocorintiano Ronaldo Nazário, que é o atual fenômeno dos bastidores da publicidade esportiva e contratos obscuros. Talvez faltasse um colorido mais popular a confraternização tais umas cervejinhas, além da carne de felino para queimar no carvão. Sem uma batucada mais estridente, o principal motivo da Copa em São Paulo já tinha sido acertado bem antecipadamente: se não deu pagode, dará muito lucro aos seus organizadores.

A várzea é aqui. A caravana foi politiqueiramente grande: a cúpula dirigente do clube do Corinthians acompanhada do tucano governador Alckmin, “apartidário” o prefeito Gilberto Kassab, representantes do Ministério dos Esportes, órgão mergulhado em denúncias de corrupção, além das mãos da parceria siamesa, Confederação Brasileira de Futebol (CBF) e Fédération Internationale de Football Association (FIFA). Muitos “companheiros” vieram ao bairro de Itaquera para representar a oficialização do teatro a respeito da “abertura” da Copa em São Paulo. Sem maiores cerimônias, o circo do terreno baldio se fez presente: gargalhadas de rapina, abraços, afagos, elogios acéfalos, ufanismo patético e cerca de um bilhão de reais do dinheiro público em jogo nas mãos da tal “iniciativa privada”.

Ironicamente, bem do lado da estação Itaquera, num terreno mais abaixo, estão alojadas temporariamente as instalações de um circo. Sim, literalmente um circo, o “Circo Moscou”, mas sem as invejáveis atrações governamentais presentes acima, no terreno baldio da prefeitura doado para a construtora Odebrecht fabricar o tal estádio. No capitalismo parasitário dos bons amigos, doação de dinheiro público tem o singelo rótulo de “investimento”. E quem paga a conta de tanta rapina amizade?

Futebol é apenas um esporte, independente das paixões envolvendo sua cultura. Todavia, os interesses coletivos básicos da população não deveriam estar acima dos interesses político-econômicos privados? Redondo e cristalino engano! Importante salientar e pontuar a disparidade dos projetos de megaeventos de verniz turístico-eleitoreiro. Há poucos metros do futuro estádio da Odebrecht onde foi feito a celebração da farra com o erário, há uma ocupação localizada nas terras que margeiam um córrego localizado na saída do Metrô Itaquera. Um pontual exemplo da carência estrutural que vive o bairro e esta observação merece maior desdobramento.

2. Itaquera sem mistificação

Com uma população de cerca de 530 mil habitantes, formada por classes C e D, dados da subprefeitura de Itaquera, que compreende Cidade Líder, Itaquera, José Bonifácio e Parque do Carmo. Itaquera não tem a “gente diferenciada” da esterilizada Higienópolis e este bairro da Zona Leste e se limita apenas a ser mais um bairro-dormitório de classe trabalhadora como muitos outros da periferia paulistana. Entre os aeroportos de Cumbica, em Guarulhos, e Afonso Penna, em Curitiba, não leva mais do que quarenta e cinco minutos de vôo, comparativamente a distância entre Itaquera até a região central da cidade de São Paulo é realizada em tediosas e exaustivas viagens que levam no mínimo uma hora de relógio (isto é, sem chuvas torrenciais), seja no trânsito engarrafado, seja no metrô superlotado. E quando chove, áreas de alagamento e bolsões de pobreza endêmica expõem a condição de carência crônica do bairro.

O terminal de ônibus localizado nas imediações do metrô batizado oficialmente de “Estação Corinthians-Itaquera”, na verdade um complexo de transporte contendo metrôs, trens e ônibus e taxis. Após banir uma onda de camelôs que ocupava a estação, a administração do metrô loteou a área em pequenas lojas de alvenaria e que aprofundou a canibalização comercial por pontos de vendas e degenerando qualquer suporte para ter uma boa logística de transporte para todos aqueles que chegam de metrô e precisam pegar ônibus e vans, ou vice-versa. Trocando em miúdos, com a concorrência do comércio local, o terminal de ônibus é uma preocupação secundária e os usuários são espremidos de forma humilhante e constrangedora entre as tendas comerciais e os ônibus e vans da SPTRANS, companhia da prefeitura que finge regular e fiscalizar o transporte público em São Paulo. Salvo os usuários que tem que utilizar pontos de ônibus que não tem cobertura sendo um transtorno adicional em períodos de chuva. O sofrimento do usuário é garantido com passagens a três reais para girar a catraca do ônibus e dois reais e noventa centavos para girar a catraca do metrô. Quem tiver o “bilhete único” consegue algum descontinho na empreitada. Os horários de pico é o verdadeiro Inferno de Dante para os usuários. Os gigantescos deslocamentos diários da população itaquerense até os locais de trabalho localizados nas regiões centrais da cidade formam um quadro macroscópico do descompasso pendular entre o mundo da vida privada e o mundo do trabalho.

Para completar a paisagem das imediações do futurístico estádio que representará São Paulo na Copa do Mundo, após anos de indiferença do Poder Público, muitas famílias em situação de precariedade vêm se aglomerando e inflando uma favela nas imediações do terreno presente nas saídas do metrô de Itaquera, na direção centro-bairro. Aliás, como se diz no jargão eufemístico do cínico politicamente correto neoliberal, entre um córrego transformado em esgoto a céu aberto, ratos, insetos e misérias infindáveis, muitas famílias em situação de precariedade vem se consolidando numa “comunidade”.

Ademais, a região de Itaquera, entre outras carências, sofre com o déficit de hospitais públicos. O hospital de referência da região é o superlotado “Santa Marcelina” e sempre envolto com crises sucessivas no atendimento da imensa população que carece passar pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

Refletindo a retórica governamental sobre meio ambiente, vale à pena comentar mais um pequeno episódico detalhe de como o bairro de Itaquera é tratado pelo Poder Público. Após a desativação da antiga estação ferroviária de Itaquera, localizada no eixo centro do bairro, no início do ano, uma praça foi instalada em seu lugar. Cabe ressaltar que neste caso, o termo “praça” ou “parque” não passa de um sórdido termo eufemístico. Na realidade, se trata de uma área bisonhamente concretada, sem nenhuma preocupação paisagística, mal iluminada e com algumas pontuais e decorativas árvores solitárias. A tal “praça” ou “parque” é um lugar bizarro, precário e desalentador que mais se parece um cemitério de concreto para sedimentar lixo nuclear no coração de Itaquera. Naturalmente, é perceptível o tratamento diferenciado pelo Poder Público paulista nas diversos bairros de distintas economias locais da cidade de São Paulo. A administração do prefeito Kassab, vem se notabilizando em criar precários parques na cidade como os tais “parques lineares” que vem se espalhando pela zona leste da cidade. Em suma, uma verdadeira orquestração regida pela estupidez e o menosprezo com a população.

3. Futebol como retórica e o preço da Copa

A cidade de São Paulo não precisa de mais estádios de futebol. De fato, carece de investimentos em infra-estrutura e organização para comportar eventos desta natureza. A questão da moradia popular é gritante e urge uma real política urbanística de ocupação do espaço público numa metrópole como São Paulo. Antes da vã euforia dos bajuladores do imediatismo irresponsável, não existe nenhuma correlação entre criar um estádio e desenvolvimento local sustentado. Aliás, o que vem se sustentando por todo o país é uma série de estádios de futebol com orçamentos superfaturados em nome da “Copa do Mundo”. Quase todos sem a menor coesão com a realidade local e que receberão seus respectivos estádios. Tal como os novos que nasceram como velhos estádios, verdadeiros “elefantes brancos”, erguidos pela África do Sul que sediou o a Copa do Mundo de 2010, o estádio itaquerense da Odebrecht é um grande celeiro de desperdício bilionário de dinheiro público. Um exemplo de como o Poder Público relega os cidadãos a último plano e onde o poder econômico é a moeda de troca dos sórdidos interesses imediatistas, de várias estirpes: pessoais, políticos e econômicos.

Antes que um iludido torcedor do time do Parque São Jorge se exalte e reverbere toda sua artilharia psicanalítica típica de que todos estão contra o seu “Timão”, é fundamental entender que o estádio oficialmente será da construtora e com administração compartilhada com o Sport Club Corinthians Paulista. De concreto mesmo é a doação de verbas públicas na construção de um estádio numa área sem infra-estrutura para um evento deste porte, exceto pela miragem publicitária do sucateado metrô. Somente com muito ufanismo e ilusão que o Poder Público poderá transformar o carente bairro de Itaquera com uma propagandeada logística de “Primeiro Mundo” num tempo hábil que possa abrigar razoavelmente os jogos em meados de 2014.

Para os que vivem no bairro, os sinais são claros que absolutamente nada de concreto é (ou será) feito na região. Como o capitalismo age como abutres na carne deteriorada, o que se tem observado na prática é uma absurda corrida especulativa para construção de imóveis domiciliares. Prédios de apartamentos com áreas diminutas e com preços exorbitantes para o padrão de renda da população, além de um acentuado aumento dos aluguéis, o que possivelmente empurrarão mais pessoas para o bairro e afastarão outras de menor poder aquisitivo para regiões anexa a Itaquera. Resultado previsível: o que estava complicado tenderá a se agravar com maior inchaço populacional e na exígua infra-estrutura do bairro de Itaquera.

Vale como um salutar exemplo da fantástica máquina da corrupção e da demagogia política. Itaquera se transforma numa grande farsa dos bons amigos da Copa do Mundo. Na esteira da absoluta conivência das mazelas e corrupção desenfreada dos contratos, o futebol e a população são de longe as menores preocupações dos seus organizadores. O importante é aproveitar ao máximo a superboquinha que o evento trará aos irrequietos dedos e tentáculos da corrupção endêmica no Brasil e do capital externo. Como é possível que Ricardo Teixeira, o imperador perpétuo de uma entidade com a CBF, passe impune a todas as acusações de corrupção e continuar sendo intacto o principal gerente da organização brasileira da Copa de 2014? Por sua vez, até um patético “comunista” ministro dos esportes do Governo Federal é bombardeado por denuncias de corrupção é continua sendo mantido no cargo e tudo se passa como se nada tivesse acontecido. Seria mera coincidência o estreito e estranho laço entre o presidente do Corinthians, Andrés Sanches, chefe da delegação da Seleção Brasileira na Copa de 2010, e Ricardo Teixeira? Até mesmo, o técnico Mano Menezes, que saiu da direção do time do Parque São Jorge com apenas um título expressivo para clube corintiano e subitamente virou o atual técnico da Seleção Brasileira. Amizades tão frutíferas que o clube sempre lembrado por “não ter estádio”, caiu no colo do seu presidente Sanchez um estádio novinho em folha sem tirar um tostão dos cofres corintianos. Mera coincidência futebolística?

Diante do espetáculo de cinismo e corrupção, o que qualquer habitante de Itaquera realmente pressente é uma velha máxima que muitos torcedores do time do Parque São Jorge gostam de recitar provocando seus adversários quando o juiz tem um papel bem conveniente para o clube numa partida de futebol: “Roubado é mais gostoso!”.


* WELLINGTON FONTES MENEZES é Mestrando em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP) – Campus Marília; Bacharel e Licenciado em Física pela Universidade de São Paulo (USP); Professor da Rede Pública do Estado de São Paulo. Blog: www.wfmenezes.blogspot.com Twitter: http://twitter.com/wfmenezes Contato: wfmenezes@uol.com.br e/ou wfmenezes@marilia.unesp.br

7 comentários sobre ““Roubado é mais gostoso”: Itaquera e a Copa dos Bons Amigos

  1. Não se deve retirar uma linha sequer do texto aqui publicado, pois representa o pensamento de milhões de brasileiros que assistem, sem nada ou pouquíssimo poderem fazer, a este absurdo projeto de beneficiamento de um clube e um grupo de pessoas suspeitíssimos. É lamentável o que se passa neste país aos olhos de todos, com as falsas desculpas de organização de uma copa do mundo de futebol. É necessário que se diga, também, que o orçamento de cerca de 1BILHÃO DE REAIS para “reforma” do maracanã, no Rio de Janeiro, é mais um escândalo nacional. Futebol não é isso, ou não deveria ser.

  2. Visão míope e sectária do articulista ao comentar a Copa em Itaquera. Por sua linha de argumentação o bom seria a abertura da Copa acontecer no Morumbi ou na Água Branca. Ou quem sabe até fazer a Copa na Argentina, já que nada no Brasil presta e só existe corrupção. Como já disse um dia Joãosinho Trinta: Intelectual curte é miséria.

  3. Gostaria de acrescentar mais uma coisa. É nítido o seu ranço ao clube de Parque São Jorge, principalmente quando reduz e estereotipa os torcedores, afirmando que eles concordam quando são beneficiados por erros de arbitragem. Eu não conheço nenhum que diga a frase mencionada no título. O seu comentário é igual aos que falam: “Brasileiro é vagabundo” e coisas do tipo. Raso.

  4. O dinheiro vem do BNDES e o montante não é impossível de ser amortizado, visto que somente em direitos já cobre uma boa parte. Em relação à verba pública, incentivo fiscal é um dinheiro virtual, ou seja não existe se não há obra, portanto não é um dispendio absurdo, visto que com certeza trará benefícios permanentes à região. Itaquera é um lugar perfeito, pois tem para onde crescer e é uma região carente de investimentos. Por que não podemos acreditar que as coisas darão certo? Haverá corrupção? Sim, mas não podemos fiscalizar ao máximo para minimizar os desvios? Seria bom para nós paulistanos que a cidade ficasse fora da Copa? Por acaso seria possível fazer a Copa em uma zona mais que estrangulada que é a do Morumbi? Enfim, eu acredito que vai dar certo e com a opinião pública investigando, poderemos sim ter uma Itaquera com índices sociais aceitáveis, realizada com gastos públicos responsáveis.

  5. Li uma reportagem onde mostrava o custo do estádio do Corinthians e da Juventus da Itália, o do Corinthians vai custa mais de 3 vezes o valor do estádio da Juventus, que é moderníssimo.
    A pergunta era, será que o custo aqui no Brasil para esta construção está de acordo com essa proporção?

  6. Pois é. O nosso dinheiro recolhido de tudo que usamos, a títulos de impostos,
    eles não respeitam. Retem tudo no bolso e assim vão elastecendo seus cofres.
    Infelizmente todos sabem que esta copa não deveria ser aqui.Não há suporte.
    Como pensam no ossinho gordo e suas vantagens, lutaram e conseguiram e
    muita gente se beneficiará.
    Só que ninguém ver protestos. Tudo caminha sem rédeas.
    Precisa saber para o mundo como se pôr a luz da insegurança.
    Cadê os jovens, cara pintada? Didi Tenório

  7. O texto é muito bom, menos no trecho em que insinua que Mano Menezes é técnico da seleção porque era treinador do Corinthians. Mano foi finalista da Libertadores pelo Grêmio, duas vezes campeão da série B, campeão paulista, campeão da Copa do Brasil, duas vezes segundo colocado no Brasileiro, enfim, tem currículo para o cargo que assumiu. Além disso, Murici, que era a primeira opção, não quis assumir o cargo.

    No entanto, você está corretíssimo no restante do texto, o estádio é um absurdo. É importante imaginar também a relação íntima entre o presidente corintiano e o ex-presidente Lula.

    Abraços,

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