A distopia de Truffaut adaptada de Bradbury: livros ardem a 451 graus Fahrenheit!

JOSÉ EUGENIO GUIMARÃES*

Blog Fahrenheit 451-Truffaut

Um ano após Jean-Luc Godard realizar Alphaville (Alphaville, une étrange aventure de Lemmy Caution, 1965), François Truffaut também lançaria o espectador nas entranhas de uma distopia. Em geral avesso à ficção científica, o diretor não titubeou em levar às telas o romance de Ray Bradbury, Fahrenheit 451. É o filme mais controvertido de Truffaut, considerado por muitos como um passo em falso. Em futuro distante, numa sociedade sob regime totalitário, os livros — considerados perigosos à segurança nacional — são postos sob controle de brigadas incineradoras. O comentário, escrito em 1975, é mais descritivo que analítico. Na época, creio, considerei que seria muito temerário arriscar apreciação mais profunda de um filme que me marcou tão profundamente. Ou o temor não passava de insegurança de um cinéfilo de apenas 19 anos, que encarava François Truffaut com a mais sacrossanta das reverências?

Fahrenheit 451 – quinto longa-metragem de François Truffaut e nono título de sua filmografia – foi realizado dois anos após Um só pecado (La peau douce, 1964) e um ano antes de A noiva estava de preto (La mariée etait en noir, 1967).

É adaptação da novela de ficção científica de Ray Bradbury. Para muitos, é um tropeção na carreira do diretor. Não é verdade! Mas pode ser classificado como a mais incomum e paradoxal de suas realizações. Nunca mais Truffaut manifestaria visão tão pessimista, árida, fria e francamente marcada pela desumanização.

Mais que estranhamento, Truffaut sentia verdadeira repulsa por filmes e livros de ficção científica. Contra o gênero, segundo consta, escreveu artigo dos mais virulentos. Alegou gostar apenas de O monstro do ártico (The thing from another world, 1951), de Christian.[1] Talvez por ter Howard Hawks na produção, realizador de sua particular predileção ao lado de Alfred Hitchcock e Jean Renoir.

Foi por recomendação do amigo Raoul Lévy que Truffaut chegou ao livro de Bradbury no começo dos anos 60. Gostou tanto que, de imediato, procurou o autor para lhe comprar os direitos de adaptação e conversar sobre a realização. Com esse exclusivo fim viajou a New York em 1962.

Fahrenheit 451, o filme, é ficção científica muito pessoal. Localiza a ação em futuro distante, num país de governo totalitário. São essas as únicas informações dadas ao espectador para a contextualização da história. A vida inteligente, a fruição intelectual e o prazer do conhecimento estão banidos de todos os setores da sociedade. Espaços e comportamentos foram padronizados. Ler não é permitido. Logicamente, não são admitidos livros e outros materiais escritos, considerados de alto risco à segurança nacional. Tais ameaças, quando surgem, são entregues aos cuidados da brigada incineradora, composta por bombeiros. Leitores são tratados como subversivos e podem, dependendo da gravidade do crime, receber punições como execração pública, prisão e morte. Apesar das analogias permitidas pelo tema, Truffaut desaconselhou qualquer identificação da sociedade imaginada de Fahrenheit 451 com as “democracias populares” do Leste Europeu.

Fahrenheit 451 permitiu a Truffaut dar vazão a duas de suas mais caras obsessões: o amor aos livros e o fascínio pelo fogo. Quanto à última, alegou sem nenhum pudor que sempre vibrou com cenas de incêndio e se considerava um pouco incendiário. O título do filme diz respeito à temperatura de combustão de uma folha de livro.

Aos apreciadores de ficção científica causa estranheza o fato de o roteiro de Truffaut e Jean-Louis Richard ter abolido qualquer traço de progresso tecnológico que identificasse a sociedade onde se passa a história como pertencente ao futuro. Nenhuma maravilha da ciência é mostrada. O tempo à frente é apenas sugerido por um décor extremamente asséptico e inquietante. No mais, tudo se parece ao mundo de hoje. Disso não escapa nem mesmo a música — que, nos filmes, geralmente, busca identificação — mesmo idealizada — com o tempo em que se passa a história. Os acordes melancólicos de Bernard Herrmann estão longe de qualquer associação aos temas da antecipação. Nesse ponto, Fahrenheit 451 presenta nítida semelhança com Alphaville Alphaville, une étrange aventure de Lemmy Caution), ficção científica dirigida por Jean-Luc Godard em 1965.

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Truffaut apresentou boas razões para abolir os elementos futuristas. Afirmou que os livros (e seus autores) sempre foram considerados inimigos do poder e, dessa forma, condenados às fogueiras reais e simbólicas. Todos os dias um livro é proibido em algum país. Fahrenheit 451 denuncia esses fatos. O futuro, no caso, é apenas a confirmação de uma tendência presente, de combate ao pensamento divergente, de guerra ao espírito crítico. Em realidades assim o indivíduo é absorvido pela massificação que força a robotização da sociedade. Sobra apenas o instinto de sobrevivência. Pela manutenção da ordem são banidos todos os movimentos em prol da valorização da vida interior, pois ameaçam o bem estar coletivo. Cessam todas as manifestações culturais.

Montag (Werner), bombeiro incinerador, é o “herói” da história. Não tem muita convicção sobre o caráter de utilidade pública da missão que desempenha. Um dia, na surdina, salva um livro da destruição. Em casa, começa a lê-lo. Fica encantado e absorvido com as novidades que descobre. Passa a faltar ao trabalho. A mudança de comportamento é visível. Levanta suspeitas na esposa Linda (Christie) e na corporação. Passa a ser vigiado pelo colega Fabian (Diffring).

Perseguido, Montag foge e estabelece contato com um foco clandestino de resistência — a comunidade dos “homens-livros” à qual se incorpora. Cada membro do grupo é responsável pela memorização de todo um livro. Com a proximidade da morte o conteúdo memorizado é repassado a uma criança ou a um companheiro. Assim, a cultura é preservada e transmitida por meio de um processo que põe em contato duas tradições geralmente vistas como paradoxais: a oral e a escrita.

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O tema da queima de livros é tão gritante que fala por si. O filme é a própria denúncia de fato tão ignóbil. Diante das cenas que mostram as labaredas envolvendo títulos os mais diversos, nada mais precisa ser dito. Principalmente quando a câmera se aproxima das chamas, permitindo ao espectador a identificação de exemplares de obras fundamentais. Por isso, Fahrenheit 451 não faz qualquer defesa da literatura, da cultura ou do saber. Cena alguma transmite mensagem de amor e respeito aos livros. A falta desse discurso a favor aumenta a secura da história, tornando-a mais contundente. Foi pensando nisso que Truffaut eliminou um dos personagens do original de Bradbury, o filósofo Faber. Suas falas, lamentando o destino dado aos livros, poderiam soar redundantes.

Desde que realizou Os incompreendidos (Les 400 coups, 1959), Truffaut manifestava desejo de realizar um filme no qual os heróis fossem os livros. Cogitou adaptar o romance Bleu d’outre-tombe, de Jean-René Clot, integralmente ambientado numa sala de aula, entre crianças. Infelizmente, não houve como concretizar o projeto.

Truffaut não conseguiu viabilizar Fahrenheit 451 na França. Por isso, deslocou a produção para a Inglaterra. Amargou a experiência. Teve sérios problemas de relacionamento com técnicos e atores britânicos devido à obsessiva atração dos mesmos pela verossimilhança, pela reprodução fiel da realidade. As coisas se agravaram diante de uma história passada no futuro. Com Oskar Werner as relações se azedaram de fato. O ator — que atuou para Truffaut em Jules e Jim ‑ Uma mulher para dois (Jules et Jim, 1961) — trouxe para as filmagens ideias prontas sobre Montag. Não foram aceitas. A situação ficou tensa. Diretor e ator chegaram ao fim das filmagens sem se falar. Nessa altura, Truffaut instruía Werner intermediado por um dublê.

A princípio, Jean-Paul Belmondo faria o papel de Montag. Desistiu com a transferência da produção para a Inglaterra. Julie Christie interpreta duas personagens: a esposa de Montag e Clarisse, professora por quem ele se apaixona.

As cenas de incêndio se revelaram perigosas. Na última, Truffaut e o câmera saíram com os cabelos ligeiramente chamuscados.

blog Fahrenheit 451 posterFicha Técnica:
Título: Fahrenheit 451
Direção: François Truffaut
Produção: Lewis M. Allen Universal, Vineyard
País: Inglaterra
Ano: 1966
Duração: 113 min.
Elenco: Julie Christie, Oskar Werner, Anton Diffring, Mark Lester, Cyril Cusack, Jeremy Spenser, Bee Duffell, Alex Scott, Michael Balfour, Anna Palk, Anne Bell, Caroline Hunt, David Glover, Gillian Lewis, Roma Milne, Noel Davis, Donald Pickering, Arthur Cox, Eric Mason, Michael Mindell, Chris William, Denis Gilmore, Fred Cox, Frank Cox, Judith Drinan, Yvonne Blake, Earl Younger, John Rae, Joan Francis, Tom Watson, Kevin Elder, Edward Kaye, Gillian Aldam.
Roteiro: François Truffaut, Jean-Louis Richard, baseados em novela de Ray Bradbury.
Direção de fotografia (Technicolor): Nicholas Roeg.
Desenho de produção: Syd Cain, Tony Walton.
Figurinos: Tony Walton.
Montagem: Thom Noble.
Música: Bernard Herrmann.
Efeitos especiais: Les Bowie.
Direção de arte: Syd Cain.
Assistente de direção: Bryan Coates.
Gerente de produção: Ian Lewis.
Mixagem: Gordon K. McCallum.
Som: Bob McPhee, Norman Wanstall.
Maquiagem: Basil Newall.

 


* guimaraesJOSÉ EUGENIO GUIMARÃES é Sociólogo. Blog: http://www.cineugenio.blogspot.com.br/

[1] Howard Hawks tem participação não-creditada na direção.

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