Propostas para o ensino de Ciências Sociais

por NILSON NOBUAKI YAMAUTI*

Segundo a Constituição em vigor, um dos objetivos da Educação seria a preparação do indivíduo para o exercício da cidadania. Dentre outros fins estipulados pela LDB, a educação superior deve estimular o conhecimento dos problemas do mundo presente. O Regimento da UEM, em um de seus itens, estabelece que a Universidade deverá aplicar-se ao estudo da realidade brasileira, em busca de soluções para os problemas relacionados com o desenvolvimento econômico e social. Nota-se, assim, que o curso de Ciências Sociais pode responsabilizar-se por algumas das finalidades estabelecidas pela Constituição, pela LDB e pelo Regimento da UEM.

Estes objetivos exprimem a preocupação de Rousseau no parágrafo final do seu “Discurso sobre a origem da desigualdade”: ele afirma que “é manifestamente contra a lei da natureza” (…) “um punhado de pessoas regurgitar (vomitar) superfluidades enquanto à multidão faminta falta o necessário”. Ou seja, seria um absurdo um curso de Ciências Sociais se fechar numa torre de marfim achando que não tem nada a ver com a massa de 40 ou 50 milhões que estão passando fome hoje no Brasil.

Não estamos defendendo aqui um curso de Ciências Sociais engajado na política partidária porque existe uma diferença importante entre fazer ciência e fazer política, entre despertar a consciência para a realidade social e incutir dogmas e palavras de ordem. A atividade política exige fé, exige uma crença absoluta na verdade, porque só assim torna-se possível motivar a ação dos militantes. Por outro lado, a atividade científica exige a postura da dúvida, supõe que não existem verdades absolutas. A pedagogia aplicada dentro de um partido é baseada na fé. A pedagogia aplicada dentro da Universidade deve ser a da dúvida. Isso não significa crer na inexistência de uma relação entre ciência e ideologia.

O que defendemos aqui é um curso de Ciências Sociais que desempenhe o seu papel específico que é o conhecimento da sociedade onde vivemos e que tenha no horizonte a busca de soluções para os problemas existentes nessa sociedade. Defendemos um curso que se recuse a ser simples “masturbação sociológica” utilizando aqui uma expressão criada por um ex-ministro do governo FHC, já falecido.

O que defendemos neste espaço de debates seria, portanto, um curso comprometido com a solução dos problemas sociais que estão conduzindo toda a humanidade a um impasse. Enquanto não encontrarmos uma solução para os problemas sociais, os governantes estarão buscando a solução na guerra a fim de desatar as contradições implacáveis da economia de mercado. E enquanto não encontrarmos uma solução para os problemas sociais, as pessoas, diante de uma ameaça difusa posta à sua sobrevivência, terão despertados condicionamentos de nosso passado ancestral. Em decorrência disso, passarão a assumir atitudes irracionais e acabarão, inevitavelmente, apoiando a guerra. Alguém que tenha o mínimo de sensibilidade já deve ter percebido que vivemos numa época de crise e que o ovo da serpente já foi plantado em nossos corações.

O professor Emir Sader, do Departamento de Sociologia da USP, publicou recentemente um artigo lamentando que as Ciências Sociais não contribuam mais para a interpretação da realidade nacional como se fazia antes do golpe de Estado de 1964. Por isso, o PT estaria chegando ao poder sem o respaldo de uma teoria, de um projeto claro e teoricamente consistente de reconstrução da sociedade brasileira.

E é importante observar que temos hoje no país muito mais cientistas sociais do que tínhamos antes de 1964. No período anterior ao golpe militar, boa parte das Ciências Sociais estavam engajadas na formulação de um projeto de construção do país discutindo intensamente a realidade nacional. É verdade que a política acabou contaminando a ciência quando teorias prontas e acabadas, formuladas fora do país, foram utilizadas para a interpretação da realidade brasileira. Mas estes erros cometidos no passado podem ser evitados sem que as Ciências Sociais precisem renunciar a opções político-ideológicas voltadas para a construção de uma sociedade mais justa, solidária e humana.

Por que as Ciências Sociais foram alienadas da discussão dos grandes problemas macrossociais e estruturais? Não foi, certamente, algo que ocorreu naturalmente. Durante o regime militar, os principais cientistas sociais foram expulsos das Universidades, os cursos de Ciências Sociais passaram a ser vigiados por agentes do Dops e, dizem, os alunos destes cursos eram fichados, automaticamente, neste órgão de repressão da ditadura militar. Muitos professores, numa estratégia compreensível de sobrevivência, foram obrigados a renunciar à concepção de teoria social que abraçavam antes do golpe de 64.

Mas o golpe fatal que eliminou o olhar crítico sobre a sociedade acredito que foi dado pela reforma da estrutura universitária que ocorreu após 1968. Com o dispositivo de incentivos institucionais positivos estabelecido nas Universidades, nós pesquisadores fomos forçados a nos especializarmos se quiséssemos fazer carreira acadêmica. Tudo isso afetou profundamente o olhar crítico sobre a sociedade. Ninguém, certamente, poderá desenvolver essa forma de percepção da sociedade estudando durante a vida toda apenas uma ou duas ou três peças isoladas deste imenso e complexo quebra-cabeças em que se transformou a sociedade contemporânea. Tragédia maior ocorreu na sala de aula. Nenhum pesquisador, a meu juízo, pode se tornar um professor crítico se enxergar a realidade social como uma montanha de peças de quebra-cabeças soltas sem conexão nenhuma. Em cada aula, este professor estaria explicando o significado do conteúdo de uma peça isolada das demais. Neste caso, o professor estaria operando com abstrações no mau sentido.

Para tentar superar a alienação acadêmica bem como a crise de paradigmas nas Ciências Sociais poderíamos estabelecer como um dos objetivos do curso de Ciências Sociais estudar a realidade brasileira integrada ao contexto mundial da globalização tendo em vista a busca de soluções para os problemas relacionados ao desenvolvimento econômico, político, cultural e social do país — objetivo este, inclusive, contemplado no Regimento da UEM.

Só uma pequena observação: o estudo da realidade brasileira no contexto do capitalismo global não dispensa o estudo da teoria social clássica senão corre-se o risco de precisarmos reinventar continuamente a roda. Mas, por outro lado, não devemos transformar os textos clássicos numa espécie de bíblia sagrada pretendendo aplicar as análises da realidade social européia do século XIX para compreender a realidade social brasileira e mundial do século XXI.

Este objetivo que propusemos para o curso de Ciências Sociais pode se transformar em palavras vazias, em intenções bonitas mas inconseqüentes, se não soubermos empregar os recursos teóricos e metodológicos e os procedimentos didáticos e pedagógicos adequados na sua implementação.

Quais seriam, a nosso juízo, os procedimentos didáticos e pedagógicos necessários para estabelecer um compromisso consistente dos cursos de ciências sociais em relação à realidade social brasileira e mundial?

1. Enfoque da totalidade

Em primeiro lugar, devemos adotar o enfoque da totalidade que consiste em enxergar a realidade social como um todo complexo com a articulação de suas partes constituintes. Significaria montar gradativamente as peças do quebra-cabeças para tornar possível visualizar o desenho arquitetônico da sociedade. Ou seja, trata-se de evitar o estudo de peças isoladas do quebra-cabeças deixando de estabelecer quaisquer conexões entre as peças. Ficamos felizes ao constatar que todas as áreas do curso de Ciências Sociais da UEM sugerem o mesmo enfoque: a área de Ciência Política propõe a interdisciplinaridade e a área da Antropologia defende a sua integração com as demais áreas.

Supõe-se, então, que defendemos todos uma pedagogia holística que se opõe à visão cartesiana e positivista que estipula a fragmentação do objeto de conhecimento e a divisão do trabalho científico.

Enxergar a sociedade como um todo consiste na síntese de múltiplas determinações. Quer dizer, não ficar só no momento da análise, não parar após o trabalho de fragmentação do objeto. É através do trabalho de síntese que compreenderemos os nexos existentes entre as diversas partes e entre cada parte com o todo.

Precisaríamos partir de uma base epistemológica consistente e adequada para não transformarmos um projeto de interdisciplinaridade bem intencionado numa empulhação acadêmica. Para que isso não ocorra, seria preciso observar outros procedimentos.

2. Concepção dialética de realidade social

Isso significa que a visão de totalidade torna-se possível se tomarmos a História como base de interpretação da realidade social.

A área de Ciência Política defende essa perspectiva ao sugerir o percurso histórico de constituição da sociedade moderna. A área de Sociologia defende como base empírica a história do homo sapiens, a história do desenvolvimento da sociedade de classes e a história do Brasil.

Se estudarmos conjuntamente, por exemplo, a transição que ocorreu há cerca de 10 mil anos atrás de uma sociedade sem classes para uma sociedade dividida em classes com o desenvolvimento da agricultura e da criação de gado, poderemos compreender mais claramente os conceitos fundamentais da Antropologia, da Ciência Política e da Sociologia. O mesmo poderíamos dizer da transição da sociedade feudal para a sociedade capitalista — transição que foi marcada pela revolução industrial.

3. Noção de concreto

Um terceiro fundamento gnosiológico para viabilizar a interdisciplinaridade seria apoiar o conhecimento da realidade social na noção de concreto.

Ao contrário da opção pedagógica concentrada no estudo de idéias ou de pensamentos, a opção pela noção de concreto supõe o enfoque ontológico, a relação dialética entre pensamento e mundo. Em outras palavras, a interdisciplinaridade tornar-se-ia plausível se partíssemos do estudo de temas históricos concretos da realidade social e se verificássemos como as diferentes correntes de pensamento abordam este tema. Procedendo desta forma, o aluno compreenderá muito melhor o pensamento dos autores clássicos porque perceberá a relação entre os conceitos e princípios abstratos e a realidade concreta ao qual eles se referem. Em resumo, a proposta consistiria em tentar compreender problemas sociais concretos utilizando como instrumental teórico abstrato os conceitos e princípios de correntes diversas de pensamento.

Ex: a questão liberdade-necessidade do ponto de vista de Durkheim, de Marx, de Sartre, do determinismo causal, do positivismo, do funcionalismo, da teoria do individualismo metodológico ou da rational choice etc.

Procedendo dessa forma, os alunos poderão perceber que não existe um pensamento único e verdadeiro para explicar as relações sociais. Poderão, assim, desenvolver uma visão crítica, não-dogmática, dos autores clássicos.

Ao praticarmos a relação entre as idéias abstratas e o mundo objetivo, corrigiremos um problema grave que existe nas Ciências Sociais que consiste na dificuldade que temos de utilizar as idéias e teorias dos pensadores clássicos como instrumentos para compreender a realidade social ao nosso redor. Uma aluna do terceiro ano me confessou outro dia que acumulou muitas informações na cabeça mas que não sabia como aplicá-las na discussão de questões concretas do cotidiano. Este é um problema, inclusive, de nós professores que estudamos durante 20 anos as idéias de determinados pensadores clássicos como se fossem idéias suspensas no ar que existiriam apenas enquanto estrutura logicamente articulada a ser desvendada na sala de aula.

Por isso é que o Lula, que esteve sempre cercado por professores de Ciência Política, disse uma vez que entende muito mais de Ciência Política do que os cientistas políticos. Mais recentemente ele disse o seguinte: “Vou ensinar os cientistas políticos a fazerem política”. Não duvido nada do que ele disse. As Ciências Sociais brocharam e se tornaram incapazes de dar respostas objetivas aos impasses existentes na sociedade contemporânea.

A diferença entre o Lula e os cientistas políticos é que enquanto estes ficam estudando somente teorias ou somente objetos empíricos extremamente fragmentados durante décadas, ele, todo dia, discute questões concretas do cotidiano aplicando os conceitos e princípios teóricos que vai assimilando de leituras, de conversas com intelectuais e nos debates. Já vi o Lula dando um show em debates com cientistas sociais e com jornalistas — os primeiros profundamente conspurcados pelo academicismo e os segundos mergulhados no olhar empírico e factual da sociedade.

Por isso, no curso de Ciências Sociais deveríamos renunciar à pedagogia inspirada na revolução kantiana, não permanecendo apenas na análise de idéias, de pensamentos, de teorias. Precisamos, sim, propiciar aos alunos e a nós mesmos o exercício constante da relação entre pensamento e mundo, entre as idéias abstratas e a realidade social concreta na qual estamos inseridos.

4. Superação do positivismo

Uma quarta base epistemológica para a interdisciplinaridade consistiria na recusa do procedimento positivista de transladar mecanicamente os métodos e princípios das ciências da natureza para as ciências humanas. Fazendo esse translado, os positivistas afirmam que a ciência só deve estudar questões de fato. As questões de valor deveriam ser eliminadas e deixadas para a filosofia.

Vamos tentar explicar o que pode significar isso. A conseqüência do enfoque positivista é que interessaria à ciência estudar o ser humano apenas do ponto de vista biológico. A medicina alopática procede dessa forma, não levando em conta que o indivíduo tem o lado emocional e afetivo que pode interferir no funcionamento do organismo e que pode explicar certas doenças denominadas psicossomáticas. Em termos práticos, a utilização de filmes e obras literárias de bom nível na explicação de conceitos e princípios teóricos poderia corrigir essa deformação da realidade humana provocada pelo enfoque positivista que predomina hoje nas ciências humanas. Além disso, seria preciso superar a visão daninha de que as Ciências Sociais, ao serem despojadas de juízos de valor, produzem verdades objetivas. O que percebemos é que esse ideal positivista tem produzido deformações que servem muito bem às teorias sociais reprodutoras do status quo eliminando qualquer teor crítico que poderia advir da intromissão de noções de valor como justiça, solidariedade e liberdade na análise das relações sociais. Vendo bons filmes tenho compreendido certos problemas básicos de teoria social que o enfoque positivista das ciências sociais jamais será capaz sequer de levar em consideração — seria mais verdadeiro afirmar que jamais desejará levar em consideração, o que é uma opção ideológica de uma ciência que se pretende neutra.


* Professor do Departamento de Ciências Sociais (Universidade Estadual de Maringá) e Doutor em Ciência Política (USP); publicado na REA nº 22, março de 2003, disponível em http://www.espacoacademico.com.br/022/22cyamauti.htm. Comunicação apresentada parcialmente no I Seminário de Ciências Sociais da UEM, em 6 de fevereiro de 2003.

2 comentários sobre “Propostas para o ensino de Ciências Sociais

  1. ACREDITO MESMO , QUE AS VEZES É PRECISO SAIR DAS 4 PAREDES DA UNIVERSIDADE, E VIVENCIAR A REALIDADE COM O POVÃO…OS EDUCADORES POPULAR ESTÃO AI MESMO PARA CONTRIBUIR COM OS NOSSOS DOUTORES,SABEDORES DO NOSSO PASSADO E CERTOS DO NOSSO FUTURO.
    CLARO, QUE NÃO EXISTEM UM(1) LULA EM CADA ESQUINA, MAS ELES EXISTEM, E ESTÃO NO MEIO DE NÓS…
    PARABÉNS PELOS ARTIGOS.
    VERA APARECIDA- MOVIMENTO NEGRO DE RR

  2. A necessidade dos professores inserirem a dimensão do sonho, da crítica, da política, da arte como linguagens válidas, canais a serem ocupados pelos alunos para planejar projetos de como podem aprender, como sonham a significação do conhecimento em suas vidas, como realizam seus vínculos e, ainda, o que esperam de sua mãe, seu pai, sua professora…..
    Paulo Ross

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