Clássicos populares

WALTER PRAXEDES*

Para escrever o romance Guerra e paz, uma obra que fascina pela beleza, tragicidade e a filosofia da história contida na narrativa, Tolstói reconheceu que contava com as melhores condições que uma vida aristocrática podia proporcionar na Rússia do Século XIX.

Sabermos que um autor desfrutava de uma condição de vida abastada não diminui em nada o valor estético de sua obra. Nem sempre uma condição de vida privilegiada possibilita a construção de uma obra intelectual relevante. Embora muitos acusassem o poeta Paul Valéry de ser um intelectual pequeno-burguês, como escreveu Sartre, “nem todo intelectual pequeno-burguês era um Valéry”.

Mais instigante, contudo, é tentarmos compreender porque algumas pessoas que passaram pelas experiências mais dolorosas e viveram em situações precárias construíram obras tão belas e inteligentes.

Ao recordarmos apenas alguns nomes que foram agraciados com o Prêmio Nobel de Literatura, Albert Camus, vencedor em 1957, viveu sua infância como órfão do pai, morto na Primeira Guerra Mundial, criado pela mãe em meio às carências dos imigrantes pobres que viviam em Argel.

Pablo Neruda, premiado com o Nobel em 1971, criado sem a mãe pelo pai ferroviário, na fria cidade de Temuco, no sul do Chile, foi quem escreveu “o verso cai na alma como o orvalho na relva”, e que sua voz buscava o vento para tocar o ouvido da amada.

Ao discursar na cerimônia em que recebeu a mesma premiação, em 1998, José Saramago recordou a saudade do seu avô Gerônimo, o camponês de quem herdou o gosto por contar histórias e com quem compartilhava a cama para se aquecer nas noites frias do inverno do Alentejo português.

Alice Munro, vencedora em 2013, foi educada no interior do Canadá pelo pai criador de raposas para produção de peles e pela mãe professora de educação infantil.

A mais recente laureada, Annie Ernaux, ao receber o prêmio, em 2022, enfatizou que começou a escrever para vingar sua condição de moradora do interior da França, social e culturalmente excluída.

Nessa pequena lista que correlaciona a origem social popular com a capacidade criativa extrema, não pode deixar de constar um menino que vendia doces feitos pela sua madrasta nas ruas do Rio de Janeiro do século XIX: Machado de Assis. E também Lima Barreto, outro menino que cresceu na mesma cidade sofrendo com o preconceito contra a cor da sua pele.

Como sociólogo, ao escrever este texto não posso deixar de mencionar a infância pobre dos nossos pais fundadores. Auguste Comte nunca teve um trabalho estável e era filho de um pai funcionário público, ressentido com a própria pobreza na cidade de Montpellier, interior da França. Emile Durkheim cresceu em Épinal, no leste francês, filho de rabino que recebia um pequeno salário. Para os estudos, Durkheim dependeu da ajuda financeira de sua mãe, que trabalhava como bordadeira. Pierre Bourdieu, neto de camponeses sem terra, era filho de carteiro e cresceu na pequena cidade de Lasseube, no sudoeste francês, quase na fronteira com a Espanha.

Entre os clássicos da sociologia também foi exorbitante o nosso inesquecível Florestan Fernandes, filho de empregada doméstica, que para ajudar a mãe começou a trabalhar como engraxate aos seis anos nas ruas do bairro da Bela Vista, em São Paulo. 

A origem social abastada não impede a construção de obras intelectuais diferenciadas entre si, mas extremamente inteligentes, críticas, política e socialmente generosas, como exemplificam Engels, o parceiro de Marx; o líder da revolução proletária, Lênin; o próprio Tolstói, com quem iniciei este ensaio; e, ainda, o filósofo Kwame Atnhony Appiah, o filólogo Eric Auerbach e o crítico literário Edward Said.

Mesmo assim, é muito instigante nos perguntarmos como nas condições de vida mais precárias foram formados seres humanos que construíram obras exorbitantes.

Em contraponto, podemos constatar também que as desigualdades e os sofrimentos existentes estão privando a humanidade de tantas outras obras imprevisíveis. Afinal, uma civilização em que é necessário ser um Machado de Assis para escapar da miséria e da opressão e construir uma obra intelectual não pode ser adequada para se viver.


* WALTER PRAXEDES é Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo; Professor Associado da Universidade Estadual de Maringá (UEM); coautor, com Nelson Piletti, de Dom Helder Camara: o profeta da paz e Principais correntes da Sociologia da Educação: autores e temas clássicos e contemporâneos (Editora Contexto).

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