“A pele que habito” e a dupla subversão de gênero

ALEXANDER MARTINS VIANNA*

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O filme “A pele que habito”, de Pedro Almodóvar, rompe deliberadamente com expectativas de gêneros ao explorar o tema da construção sociocultural dos papéis masculino e feminino por meio da situação-limite da transexualidade forçada, que se origina de uma trama de vingança – em si mesma equivocada enquanto trama de vingança – de um pai/cientista que, tropologicamente, sobrepõe Pigmaleão e Frankenstein em sua caracterização dramática.

O filme se mantém numa zona liminar ao sobrepor uma trama de ficção científica – em chave biotecnológica – ao tema da transexualidade. Os dois gêneros (literário e sexual) não se realizam de fato, embora o roteiro tenha sido engenhosamente concebido para criar tal expectativa ao não seguir uma linearidade cronológica. Somente ao final percebemos que Vicente/Vera (transexualidade forçada) não realiza o que seria previsível no gênero de ficção científica de chave biotecnológica: o mutante não assume efetivamente as pressupostas características psicológicas do novo ‘corpo’ (em si mesmo, uma ilusão montada por meio da castração cirúrgico-psicológica e de ‘pele de porco’), ou o assume estrategicamente, conforme uma expectativa estereotipada de papéis sexuais, como meio de sobreviver frente ao mundo de confinamento criado pelo cientista Robert e que provoca a sua vulnerabilidade momentânea, suportável porque aceita o ópio que Robert lhe oferece “para esquecer”.

No entanto, engenhosamente, as tópicas de Pigmaleão e Frankenstein se sobrepõem para, ao final, o drama de Frankenstein predominar: Robert se apaixona por Vera/Vicente (obra de arte/científica), mas é assassinado por Vicente/Vera (glória científica pretendida, mas não alcançada) que, valendo-se da técnica de Yoga durante o confinamento (aliás, o próprio confinamento preparatório de sua suposta nova identidade é análogo ao tipo de confinamento para aprendizado vivido pelo monstro de Victor Frankenstein), aprendeu a se refugiar em seu interior para não ser, de fato, tocado/penetrado por Robert. Portanto, a tópica de Pigmaleão é ilusória, havendo uma subversão das expectativas dos gêneros literário e sexual: a potência biotecnológica não transforma Vicente em Vera, pois Vicente apenas habita o corpo que lhe foi imposto pela mistura, em Robert, (1) de vingança pessoal pelo suicídio da filha, (2) de glória científica e (3) de obsessão com a esposa adúltera suicida.

A trama principal pode ser resumida da seguinte forma:

1- O cientista Robert vive o luto da esposa e da morte da filha. Ambas se suicidaram jogando-se de janelas, mas por motivações distintas. A esposa adúltera havia sofrido um acidente de automóvel, que a carbonizou, quando tentava fugir de Robert ao se apaixonar por Zeca. Zeca e Robert eram irmãos, mas não sabiam disso, filhos da governanta de El Cigarral. A esposa de Robert sobrevive ao acidente, pois ele fica obcecado com a ideia de “devolver-lhe a vida” por meio de suas práticas científicas. Ela é reconstruída num ambiente privado de luz e beleza primaveris, tal como o monstro de Victor Frankenstein. Assim, ela sobrevive ao acidente, mas fica gravemente deformada. Numa manhã, ao ouvir a sua filha Norma cantando no quintal, aproxima-se da janela. Até então havia sido retirado da casa tudo que pudesse refletir imagem. No entanto, ao se aproximar da janela, viu sua imagem no vidro, ficou tomada pelo horror e se jogou da janela, morrendo perante a filha que, traumatizada, ficou por seis anos aos cuidados de uma clínica psiquiátrica.

2- Os médicos de Norma convencem Robert, seis anos depois, a tentar uma ressocialização da filha, assistida por muitos remédios. Então, Norma e Robert vão a uma festa de casamento, onde ela encontra Vicente, que se drogava. Robert se descuida de Norma, que vai para o jardim com Vicente. Norma está trajada num rosa pueril, que se estende da sandália ao casaco de crochê. Tudo isso sinaliza que ela ainda está retida numa redoma emocional infantil. Ambos têm uma conversa dissonante, pois Vicente pensa que Norma, tal como ele, estaria ‘alta’ devido ao uso de drogas por farra, não por razões clínica. Eles começam a se beijar e a excitação sexual os toma de forma diferente: Vicente quer o corpo daquela mulher e ensaia a penetração; ela não sabe o que quer, mas, no meio daquela excitação – uma novidade para uma menina emocional em corpo de mulher – sente a penetração e começa a gritar. Vicente não entende a reação, pois achava que havia consentimento. Drogado e exasperado pelos gritos de Norma, coloca a mão em sua boca para calá-la, mas não força o sexo. No entanto, institivamente, Norma o morde. Vicente reage, em reflexo, dando um tapa em seu rosto, que a deixa desacordada.

3- A situação entre Vicente e Norma é liminar, como várias outras ao longo do filme, mas esta se evidencia como uma cena que não foi de estupro: ao vê-la desacordada, Vicente não se aproveita da situação e, com delicada erotização, veste o corpo de Norma, o que evoca a cena na loja de sua mãe, quando veste um manequim de palha com equivalente erotização. Vicente ‘foge’ com sua moto e Robert chega. Ao encontrar a filha, esta acorda em surto psicótico e passa a associar a imagem do pai àquela do ‘estuprador’. Por conta disso, os próprios médicos de Norma aconselham Robert a não ver a filha no hospital com tanta frequência, o que é mais uma situação liminar, pois os médicos não estão completamente seguros da inocência de Robert em relação ao suposto ‘estupro’ da filha. Dias depois, sabemos que Norma se matou, jogando-se da janela da clínica. Tudo isso vai alimentar o ódio vingativo de Robert contra Vicente.

4- Robert rapta Vicente, tenta manipular sua mente por meio do confinamento e mistura sua ânsia de vingança contra o ‘estuprador’ de sua filha com a oportunidade de glória científica, ao foçar, por meio de cirurgias e transgenia, a transexualização do corpo de Vicente. Mais uma zona liminar é, portanto, construída no filme: a vingança contra o suposto ‘estuprador’ retira a barreira moral quanto ao uso de cobaias humanas para seus experimentos científicos. À medida que vai construindo a sua obra de arte – deliberadamente uma recuperação da imagem da esposa suicida –, Robert se apaixona por ela, mas o obra, de fato, não se molda afetivamente às suas expectativas pigmaleônicas. Robert somente descobre isso quando a obra se volta conta ele, destruindo-o. Depois que o filme faz a transição entre o ator (Jan Cornet) e a atriz (Elena Anaya) que encarnam Vicente/Vera, é Robert que rebatiza Vicente como Vera, para seu patente desconforto. Como sabemos, nas conquistas de ‘novos mundos’, nomear é um ato de domínio/posse: Robert passa a chamar, emblematicamente, Vicente de Vera Cruz.

Vera Cruz não é a única alusão situacional ao Brasil: quando canta a música no jardim de sua casa que atrai sua mãe, fatidicamente, para o suicídio, Norma usa prosódia brasileira, com leve sotaque espanhol; Zeca passou um tempo na Bahia, fazendo alusão focal ao seu carnaval, que é emblema cultural estereotípico de transexualidade/travestimento; compõe o cenário da casa de Robert um quadro de Tarcila do Amaral, intitulado “Paisagem com Ponte”, que se associa ao tema da liminaridade, ambivalência ou transitividade social, pessoal e espacial.

A situação de Vicente/Vera se torna ainda mais liminar à medida que Robert não tem o aval esperado da comunidade científica para continuar as suas experiências transgênicas com pessoas, o que significa que a existência de Vicente/Vera é um risco calculado do qual não quer abrir mão. À medida que, aos olhos de Robert, Vera é somente Vera, permite-se apaixonar por ela, pois é um simulacro de esposa renascida e, aos poucos, o ódio pelo que supostamente Vicente teria causado à sua filha vai ficando para trás. Vicente, por sua vez, faz uso estratégico de sua ‘vulnerabilidade feminina’ e entra no papel de Vera, tentando corresponder às expectativas de Robert e ganhar a sua confiança.

No entanto, o aparente laço de confiança entre Robert e Vera ocorre depois do encontro traumático com Zeca, que invade El Cigarral com a ajuda involuntária da mãe, que volta a ser governanta da casa. Vicente aproveita esta oportunidade e tenta fugir, mas é capturado por Zeca. Sem saída, Vicente usa seu corpo de Vera para sexo com Zeca (mais uma vez, o tema do ‘estupro’ fica numa zona liminar), vendo nisso um meio de fugir do cativeiro. No entanto, Zeca queria o corpo de Vera para sexo e sequestro, de modo a foçar Robert a fazer uma operação plástica que pudesse salvá-lo da perseguição da polícia depois de um roubo à joalheria. Robert chega em casa enquanto Zeca penetra fortemente em Vera/Vicente. Ao flagrá-lo sobre Vera, aponta a arma primeiramente para ela, que sinaliza com o olhar de desespero que aquilo não é ‘consentido’. Então, Robert mata Zeca.

A partir daí, por meio do relato da governanta, Vera fica sabendo das histórias de perdas familiares de Robert. Vicente permite-se alguma empatia pelo seu algoz, ensaiando psicologicamente o que poderia aparentar uma “síndrome de Estocolmo”, o que cria a ilusão no expectador de que a tópica de Pigmaleão vai predominar sobre a tópica de Frankenstein. No entanto, em nenhum momento a trilha sonora do filme moraliza positivamente a relação Robert/Vera. Vera não é “Uma Linda Mulher”. Vicente permanece vivo embaixo de sua pele e inacessível para Robert.

O cenário do filme sutilmente sugere que Vicente se inspira nas personagens femininas e temas da ambivalência sexual das novelas de Alice Munro (n. 1931) para compor um simulacro de feminino para Robert, enquanto estampa a sua resistência psicológica – nos escritos e desenhos da parede do quarto de confinamento e nas esculturas que faz – com alusões à obra da artista plástica e militante LGBT Louise Bourgeois (1911-2010). Aliás, nos agradecimentos da ficha técnica do filme, Pedro Almodóvar diz: “Obrigado a Louise Bourgeois, cuja obra não apenas me emocionou, mas também serviu de salvação para a personagem Vera”.

Vicente era heterossexual antes de ser submetido à transexualidade forçada e somente física. Trabalhava no brechó da mãe junto com sua bela ajudante lésbica, que achava que Vicente gostava de homens devido ao modo como vivia a sua masculinidade voltada para a sensibilidade das artes. O diálogo entre ele e a ajudante lésbica do brechó serve para demarcar mais uma zona liminar no filme: a ajudante lésbica, que não era masculinizada, pressupunha que Vicente fosse gay porque não era ‘machão’. Por sua vez, mesmo sabendo de sua orientação lésbica, Vicente gostava de flertar com ela. No diálogo entre ambos, Vicente fala que gostaria de trajá-la com um vestido de seu gosto, ao qual ela responde que era ele que deveria vesti-lo. Em resposta, Vicente diz que ela estaria muito equivocada a seu respeito.

É justamente este vestido e a lembrança deste diálogo que possibilitará que Vicente seja reconhecido por ela e, por conseguinte, possa convencer a sua mãe que, no corpo de Vera, ainda habita Vicente. Em vários momentos, seja com Zeca, seja com Robert, Vicente sentia desconforto – mais psicológico do que físico, considerando que usa a maior prótese peniana para formar, sob as prescrições médicas de Robert, o ‘seu’ canal vaginal – com a penetração, tanto que, antes de assassinar Robert, não aceita a ideia de penetração anal e, mais uma vez, tenta postergar a penetração vaginal, alegando dor devido à brutalidade sexual de Zeca.

Ao final do filme, a tríade entre (1) Vicente em corpo de ‘Vera’, a (2) ajudante lésbica que permaneceu no brechó depois de seis anos e a (3) mãe enlutada aponta para uma possibilidade de configuração liminar de família: a solução afetiva para Vicente seria uma relação lésbica ao nível da pele, mas que não seria lésbica ao nível do seu self psicológico, pois a vaginoplastia foi uma imposição vinda de fora, não gerando em Vicente o real desejo de ter intercursos sexuais vaginais com ‘homens’ ao modo de uma expectativa patriarcal, machista e heteronormativa de papéis de gênero; a ajudante lésbica – já integrada à rotina comercial e familiar da mãe enlutada de Vicente – poderia ser esta possibilidade de parceria afetiva e cúmplice do segredo atroz que cerca a ‘escapada’ (“Runaway”, Alice Munro) de Vicente, que fugiu do cativeiro por meio do corpo de Vera e somente poderia ser identificado/resgatado pela amiga lésbica.

Este filme mereceria um ensaio mais longo, que explorasse, no detalhe, o processo de formação de elenco, as alegorias e citações no cenário (presença de livros, quadros e citação de autores), a trilha sonora, o figurino, a caracterização dos personagens, as sequências e sobreposições fotogramáticas, enfim, tudo que cercasse a sua materialidade, mas as regras do blog “Ensaios sobre Cinema” apenas me permitem provocar um interesse que não exceda a quatro páginas – e, aqui, vejo que já me excedi…

Assim, gostaria que vocês, ao assistirem ao filme, observassem a recorrente presença da liminaridade nos detalhes cênicos, pois mantêm vínculo orgânico com a trama principal. Tudo no filme foi estruturado para romper com algumas expectativas de gênero literário-cinematográfico e sexual, combatendo simplificações e evidenciando, por meio de uma situação-limite (a transexualidade forçada como forma de vingança), as convenções que fundam a potencial violência (simbólica e física) dos preconceitos e fronteiras socioculturais que configuram expectativas sobre papéis sexuais e afetivos.

Ao transformar Vicente no mutante biotecnológico Vera, Robert só mudou a pele, mas não o self psicológico de Vicente. Deste modo, o filme contraria, por um lado, a expectativa do gênero de ficção científica de chave biotecnológica; por outro lado, a transexualidade forçada de Vicente não termina em suicídio, mas em reação vingativa da criatura contra o criador, ao modo da tópica do monstro de Frankenstein. Contudo, na vida fora do filme, muitos casos de transexualidade, não forçados por um indivíduo vingativo como Robert, mas forçados ou impedidos por costumes coletivos patriarcais, heteronormativos e anônimos – que se traduzem em leis ou na negligência regulamentar das mesmas em proteger e aperfeiçoar a igualdade civil – terminam em suicídio.

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Ficha Técnica
Título: A pele que habito
Título original: La piel que habito
Ano: 2011
País: Espanha
Diretor: Pedro Almodóvar
Roteiro: Pedro Almodóvar e Agustín Almodóvar
Atores principais: Antonio Banderas, Elena Anaya e Jan Cornet
Duração: 115 minutos


vianna*ALEXANDER MARTINS VIANNA é Mestre e Doutor em História Social pela UFRJ. Professor Adjunto II de História Moderna do DHIST/UFRRJ.

20 comentários sobre ““A pele que habito” e a dupla subversão de gênero

  1. Obrigada pelo ensaio detalhado a respeito do filme perturbador. Acabo de tentar assistir e não consegui chegar ao final da trama. Assim, em texto, parece ser um filme incrível. Mas assistindo, as emoções que nos causam são bem perturbadoras. No mais, o ensaio está incrível!

  2. O que leva os transexuais ao suicidio é a expectativa de “ser”, so que o transexual parece mas nunca vai ser, sempre haverao sinais indicando que a pessoa não é como gostaria de ter nascido, sempre tera que ficar tentando corrigir “falhas”, para a pessoa não pirar e nao se suicidar tem que aceitar a sua condiçao de transexual, e aceitar o fato de que não precisa ser. Como a Rogeria disse o lance não esta em ser, porque não vai ser nunca, o bom esta em parecer.

  3. Vi o filme nesses dias, e amei. Estou até hoje pensando nele, e lendo análises. O seu texto é ótimo, por mim leria nem que fosse um livro sobre. Acredito que tem muitas pessoas que não gostam do filme pois não enxergam as mensagens discretas que ele transmite, e as analogias junto com vários significados embutidos. É um filme que requer atenção.

  4. Alexander ,fiquei grata e embevecida ao ler seu texto . E se fossem 10 páginas ,leria com imenso prazer! Assisti ao filme no sábado 11/07/2015 e desde então não consigo pensar em outra coisa . O filme mexeu demais comigo , Almodovar tem esse poder sobre mim rs , mas A Pele que Habito foi mais profundamente que qualquer outra película .
    Parabéns pelo excelente texto!

  5. Bela análise! Meus sinceros agradecimentos, por juntar as pontas que faltavam e aumentar ainda mais a minha admiração por este filme. Acredito que seu texto (ou até a tal “versão extendida” dele) seria muitíssimo bem vindo na Revista Universitária do Audiovisual (a RUA), uma revista online administrada por alunos do curso de Imagem e Som da UFSCar. Segue o link da revista, mais especificamente da sessão na qual acho que seu texto mais se enquadra: http://www.rua.ufscar.br/site/?page_id=305
    Se não for do seu interesse, fica a dica como leitura. Abraço, e mais uma vez, parabéns!

  6. Cara Andreia,
    Saudações cordiais!
    Obrigado pela leitura atenta.
    Este filme é tão cheio de arquétipos marcantes que acabei chamando Zeca por um deles. Nosso querido editor já corrigiu isso.
    Abraços, Alexander

  7. Assisti a esse filme a alguns anos. Um excelente filme que realmente rende muitos debates. Na minha modesta opinião, é o melhor filme do Almodóvar.

  8. Cara Julia Barbosa,
    Saudações cordiais!
    Na verdade, se vc rever a cena, perceberá que Norma não ouve a música (não está em sua mente). A estética da cena não sugere este jogo de sentido. A música começa a tocar baixinho e depois vai aumentando e perdura depois que Norma desmaia, até que o último verso diz: “Quero ser a flor que se deu de amor…”, provocando a ironia trágica para uma cena de defloramento interrompido, o que cria o efeito de liminaridade que será o mote para um novo suicídio na trama do filme, aquele de Norma. Esta música está associada ao trauma (suicídio da Mãe) que manteve Norma emocionalmente retida na esfera infantil (o que é reforçado pela forma como se veste) e a torna despreparada para lidar com as emoções e a sexualidade da esfera adulta.
    Além disso, a música serve como um demarcador moral cênico que sinaliza para o suicídio vindouro de Norma, ou seja, uma música que fala de entrega amorosa, mas, nos jogos cênicos do filme, torna-se uma trilha sonora que embala o suicídio de Mãe e Filha. Quando a música é introduzida na cena do jardim, não está na mente de Norma, pois foi concebida para o espectador, gerando neste, deliberadamente, uma zona liminar de emoção e desconforto que é coerente, no detalhe, com a estrutura global da trama: o desconforto com a liminaridade, pois Vicente não é herói, nem vilão, nem algoz, mas vai ser vítima de uma trama de ‘vingança’ que não cumpre a catarse dramática de uma trama de vingança. Por isso, a cena do jardim é passada duas vezes: na perspectiva de Robert e na perspectiva de Vicente/Vera, destruindo o fundamento estético-moral de uma “trama de vingança”.
    Há no filme um rompimento permanente com hábitos e expectativas. É isso que propõe Almodóvar: complexificar o ser humano em suas filigranas; jogar com hábitos e expectativas em torno de determinados códigos estéticos literário-cinematográficos, morais e de relações socioculturais de gênero e, por fim, criar um efeito de sublime que deixa, ao final, o espectador sem palavras…
    Abraços e obrigado pela leitura,
    Alexander

  9. Parabéns! Muito interessante o ensaio. Mas acredito que no tópico 2 também seria interessante e importante mencionar que a Norma não só grita e se desespera devido a tentativa da penetração, mas também porque nesse exato momento a mesma ouve tocar a música que ela cantava quando a mãe se suicida.
    Novamente Parabéns!

  10. Caros Marcelo, Frid e Anderson,
    O ensaio é mesmo uma provocação introdutória, um ponto de partida de uma via que pode ser trilhada por outros. Espero poder dar mais páginas para esta ideia em outro formato de publicação, pois, os editores do blog recomendaram que não fossem feitos mais ensaios em série de um mesmo filme e que não fossem tão longos, para caberem no formato de leitura do blog. Como vc sabem, textos longos em blogs raramente são lidos com a devida atenção.
    A presença no filme de obras de Alice Munro e da obra “Selfish Gene” de Richard Dawkins precisa ser analisada com mais acuidade, pois o filme, a meu ver até este momento, oscila entre uma leitura “douta” e uma visão “digest/vulgar” dessas obras. Penso que a citação visual de tais referências joga com esta dupla expectativa. Então, seria importante analisar a fortuna crítica de tais referências para se entender os enquadramentos/escolhas de Almodóvar sobre elas. Há efetivamente um jogo interessante de intertextualidade específica na estética deste filme.
    Tal forma de ‘citação visual intertextual’ é também uma incitação/inquietação de Almodóvar sobre visões e teses sobre natureza humana e relações de gênero, sempre localizadas em determinada tradição cultural-literária e científica. Robert é associado ao masculino científico, culturalmente localizado, de “Richard Dawkins”. Por outro lado, Vicente/Vera fica associado a Munro/Bourgeois. Então, que fortuna crítica é usada/criada por Almodóvar para fazer o jogo de associação dessas referências a Robert e Vicente/Vera, respectivamente?
    Tudo isso valeria uma dissertação ou tese… Alguém se habilita?
    Abraços e agradeço a leitura atenta de vocês,
    Alexander

  11. Que ensaio espetacular! Nesse que considero o melhor filme de 2011 e uma das grandes obras-primas de Almodóvar, acredito que está uma das mais complexas discussões sobre o papel do gênero na formação da subjetividade. Fiquei com vontade de ler mais o que vc teria a dizer com relação à intertextualidade do filme com os contos de Alice Munro. Parabéns, Alexander!

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