Eisenstein e o Cinema Soviético (II)

ALEXANDER MARTINS VIANNA*

 

“Como uma arte genuinamente maior, o cinema é único porque, no sentido pleno do termo, é um filho do socialismo… Num único ato cinematográfico, o filme funde o povo a um indivíduo, uma cidade a um país. Funde-os mediante mudança desconcertante e transferência…, mediante…o escorrer de uma lágrima…” (Sergei Eisenstein, 1939)

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Sonorização, stalinismo, silêncio e Eisenstein

No ensaio anterior, tratei da ambiência político-institucional de emergência do cinema de Sergei Eisenstein (1898-1948) na era muda do cinema soviético. Neste ensaio, pretendo analisar a sua transição da fase muda para a sonora, demonstrando as suas implicações estético-sociais e políticas, assim como, os seus reveses pessoais durante o contexto institucional stalinista na URSS, até a sua morte.

Entre 1929 e 1934, iniciou-se o processo de stalinização do regime soviético, com a execução do primeiro plano quinquenal, o expurgo dos desafetos políticos de Joseph Stalin (1878-1953) e o culto à sua personalidade. Entre meados de 1936 e finais de 1938, ou seja, durante uma fração do período do segundo plano quinquenal, ocorreu uma grande onda de repressão política na URSS, a partir da qual se pode considerar que houve a derrapagem stalinista irreversível do regime soviético, jamais completamente superada até o fim da URSS. No entanto, durante a maior parte do primeiro plano quinquenal, Sergei Eisenstein estaria no exterior, cuja jornada iniciou com a viagem promocional, por Paris, do filme “O Velho e o Novo” (1929). Neste mesmo ano, pôde fazer o seu primeiro ensaio de contraponto entre imagem e música com o filme “Romance Sentimental” (1929).

Em 1930, ao ser contratado pelos estúdios Paramount, Eisenstein partiu para Hollywood, onde trabalhou na adaptação das novelas “L’Or”, de Blaise Cendrars (1887-1961), e “Uma Tragédia Americana” (1925), de Theodore Dreiser (1871-1945). A estada de Eisenstein em Hollywood possibilitou que percebesse que o cinema sonoro tinha como matéria-prima principal o monólogo interior e não o diálogo, o que era algo particularmente solicitado na caracterização cênica do personagem Clyde Griffiths em “Uma Tragédia Americana”. Assim, segundo Eisenstein, o monólogo interior seria o maior desafio estético para a observação e a invenção criativa de um filme sonoro.

Eisenstein narrou a sua experiência na produção de “Uma Tragédia Americana” em seu artigo “Odolzhaites!” (julho de 1932), demonstrando as várias sutilezas para um roteiro de filme sonoro que expusesse adequadamente os “monólogos interiores” do protagonista Clyde Griffiths e, assim, intensificasse o seu dilema psicológico e a dimensão trágica da divergência entre seu sonho, os meios planejados para alcançá-lo, o seu arrependimento em usá-los e a ação que efetivamente aconteceu, criando uma situação ambígua sobre como definir a sua culpa na morte da namorada grávida.

Além disso, Eisenstein destacou em “Odolzhaites!” o quanto o conceito ideológico presente na produção e montagem de um filme interferia na abordagem do tema: os produtores do cinema norte-americano queriam um filme policial simples e compacto sobre um assassinato, em que se definisse desde o começo a culpa de Clyde, mas Eisenstein não acreditava que a novela de Dreiser fosse tão simples assim e, por isso, apresentou um roteiro que dava fundamental atenção ao fato de que era a estrutura da sociedade que levava Clyde a planejar um assassinato – embora não o executasse de fato – como condição de possibilidade para a sua ascensão social. Por isso, o seu roteiro foi rejeitado**.

Então, Eisenstein quebrou o seu contrato com os estúdios Paramount e partiu para o México, com o objetivo de dirigir, em 1932, o filme “Que viva México!”, financiado por capital coletado pelo novelista Upton Sinclair (1878-1968). O filme “Que viva México!” nunca foi completado por Eisenstein devido às suas divergências com Upton Sinclair. Alguns dos negativos do filme foram vendidos e liberados em três produções, que não guardaram a menor semelhança com o plano original de Eisenstein: “Trovão sobre México” (1932), quando Eisenstein ainda estava no país; “Dia da Morte” (1932/34); “Tempo no Sol” (1939).

Em 1933, Eisenstein voltou para Moscou e comprometeu-se com a produção de “O Prado de Bezhin” (ou “Traição na Campina”). Contudo, depois de várias semanas de preparação, foi ordenado que suspendesse a sua produção.  Eisenstein foi mais uma vez acusado de “formalista” pela censura stalinista. Sobraram deste filme somente alguns fotogramas, que foram editados no Brasil como adendo promocional para o DVD do filme “A Terra” (1930), de Alexander Dovzhenko (1894-1956), pelo selo Continental.

Para evitar novas restrições da censura stalinista, Eisenstein resolveu “mostrar arrependimento” pelos “erros” de seus trabalhos durante o Congresso dos Trabalhadores do Cinema Soviético em janeiro de 1935, no qual afirmou estar presenciando “desde os últimos anos” uma revolução temática e ideológica do cinema soviético devido à sonorização dos diálogos e monólogos, fato que ele não separava das mudanças históricas e tecnológicas daquele momento. (EISENSTEIN, 2002a: 120-139)

Ao comparar as “eras” dos filmes mudos e sonoros, Eisenstein lembrou que, no auge do cinema mudo soviético, o tema recorrente era o “herói de massa” e, por isso, todo o método de representação derivava amplamente disso: a epopéia e o lirismo – com seus protagonistas típicos e histórias que rejeitavam heróis individuais – davam o tom expressivo para as montagens, possibilitando o uso do princípio da montagem conceitual como guia da expressividade do cinema. No entanto, ressaltava Eisenstein, começavam a se distinguir no estágio sonoro do cinema os personagens-heróis individuais. Ele definia esta tendência no cinema soviético como “historicamente lógica” porque a URSS viveria uma fase de “bolchevização ainda mais distinta, uma fase de clareza ainda mais dirigida ideologicamente e essencialmente militante”. (Apud: EISENSTEIN, 2002a: 120-139)

Para se entender o tom do discurso de Eisenstein durante o Congresso dos Trabalhadores do Cinema Soviético, deve-se considerar que, desde 1934, ao final do primeiro plano quinquenal, Stalin havia declarado que a URSS havia chegado ao comunismo – i.e., ao idílio de prosperidade material por meio da coletivização forçada dos meios de produção (negativamente impactante no campo, contrastando com a fase de recuperação relativa da NEP em relação às perdas na produção de alimento entre 1914 e 1921). Oficialmente, a “grande fome” de 1932-1933 não existira e já se havia anunciado o segundo plano quinquenal. Portanto, recém-chegado do exterior e já tendo sofrido os efeitos da censura stalinista na produção do filme “O Prado de Bezhin”, Eisenstein viveu, entre 1933 e 1935, sob o controle oficial da propaganda stalinista, que se orgulhava dos aparentemente promissores planos quinquenais.

Tornara-se evidente para Eisenstein que o processo stalinista de modernização autoritária rompera completamente com a “livre experimentação” do contexto da NEP, em favor de um dirigismo opressivo e do culto à personalidade do líder Joseph Stalin, posto acima da vanguarda do Partido Bolchevique, contra o qual seria infrutífero lutar. Daí, mensurando palavras e utilizando uma apaziguadora figuração metonímica em sua contextualização materialista-dialética do filme sonoro soviético em 1935, Eisenstein afirmava haver uma relação histórica entre uma nova estética para protagonistas fílmicos individualizados e a fase/face atual do regime soviético:

“(…) não é por acaso que exatamente neste período, pela primeira vez em nossa cinematografia, começam a aparecer as primeiras imagens acabadas de personalidades, não apenas de quaisquer personalidades, mas das personalidades mais eminentes: os líderes comunistas e bolcheviques. Exatamente como do movimento revolucionário das massas emergiu o único partido revolucionário – o dos bolcheviques –, que dirige os elementos inconscientes da revolução e os leva em direção a metas revolucionárias conscientes, do mesmo modo as imagens cinematográficas dos atores principais dos nossos tempos começam, durante o atual período, a se cristalizar fora da qualidade de massa revolucionária geral do primeiro tipo de filme. E a clareza do slogan comunista ressoa mais definitivamente, substituindo o slogan revolucionário geral.” (Eisenstein, 2002a: 121).

É possível que este tipo de declaração tenha aberto para Eisenstein a possibilidade de sobreviver ao Grande Expurgo (1936-1938) e, assim, desenvolver o projeto para um épico medieval que contaria a história de “Alexander Nevsky” (1938), respeitando a política de Stalin de glorificar “heróis russos da unificação nacional”. A história da Revolução oficialmente contada durante os anos de governo Stalin sempre enfatizava a sua figura como decisiva no desenrolar dos eventos, colocando-se em pé de igualdade ao lado de Lenin – figura impossível de ser apagada da memória da Revolução, diferentemente de outros desafetos políticos, como Leon Trotsky (1879-1940). No entanto, agindo nos limites da censura stalinista, Eisenstein reconfigurou a história de Alexander Nevsky para que representasse, ao final, um majestoso triunfo do coletivismo sobre a figura individual do líder carismático.

Durante a II Guerra Mundial (1939-1945), com a ocupação nazista da frente ocidental soviética, Eisenstein entrou na empreitada de outro projeto épico, “Ivan, o Terrível”, figura histórica que tinha um apreço particular de Stalin. Desde outubro de 1941, ele e outros cineastas haviam migrado para Alma-Ata e engajado-se, de acordo com suas palavras, em “disparar filmes contra o inimigo”, aplicando através do cinema golpes tão duros quanto aqueles de um tanque ou avião e, assim, “preservar a cultura cinematográfica da onda de destruição nazista”. Estando ele e seus companheiros longe da frente de guerra, sentiam-se com a missão de “analisar o passado para preparar o futuro”. (Apud: EISENSTEIN, 2002a: 176-220)

Como sensível sismógrafo da realidade, pensava Eisenstein, o cinema – a mais jovem das artes – deveria resistir à força desagregativa da guerra e recriar a unidade. Com este espírito, Eisenstein engajou-se no trabalho de “Ivan, o Terrível” em 1943, terminando a sua primeira parte em 1944. A segunda parte foi iniciada em 1946 – agora o momento era de reconstrução da URSS – e uma terceira parte foi vislumbrada, mas um ataque de angina interrompeu seu trabalho por vários meses. Quando pretendeu retomar os trabalhos, poucos dias depois de completar 50 anos, Eisenstein morreu, em Moscou, a 11 de fevereiro de 1948. A edição da segunda parte do filme foi concluída e liberada somente em 1958, ou seja, quando havia alguma esperança de desestalinização na URSS. Portanto, dependendo de sua edição atual em DVD, este filme pode ter múltiplas materialidades eisensteinianas, mas não são necessariamente de Eisenstein.

Paralelamente aos trabalhos da primeira parte de “Ivan, o Terrível”, Eisenstein escreveu um artigo em que fazia um balanço da experiência do cinema soviético à luz do cinema norte-americano, centrando-se no caso D.W.Griffith. (EISENSTEIN, 2002a: 176-220) Segundo Eisenstein, não seria possível separar o pensamento da montagem da formação social do pensamento. Assim, a estrutura refletida no conceito de montagem de Griffith seria aquela da sociedade burguesa, percebida como um contraste entre possuidores e despossuídos, mas que se refletia na consciência de Griffith de um modo não mais profundo do que a imagem de uma complicada corrida entre duas retas paralelas. Portanto, o conceito de montagem de Griffith seria a expressão de uma visão dualista de mundo em que duas retas paralelas (o pobre e o rico) correriam em direção a uma ‘reconciliação’ no infinito – que é algo inacessível.

Em contraste, para Eisenstein, o conceito de montagem no cinema soviético teria uma compreensão do fenômeno social através de uma ‘imagem’ totalmente diferente, proporcionada por uma visão de mundo tanto monística quanto dialética. Coerentemente com sua visão de montagem organicamente dialética, Eisenstein afirmava que seu microcosmo tinha de ser entendido como uma unidade que, devido à tensão interna das contradições, se dividia para reunir-se numa nova unidade de um novo plano qualitativamente superior, a conceber a imagem de um modo novo. Isso representava um salto qualitativo importante da montagem conceitual em relação à concepção de montagem, por justaposição, da escola de Lev Kuleshov (1899-1970).

Ora, justamente por manter coerência teórica com o materialismo dialético marxista, Eisenstein indagava que a forma e o sentido do cinema na URSS – tal como a sua contraparte no cinema de D.W.Griffith (1875-1948) nos EUA – não poderia deixar de ser a expressão estética da formação social soviética – ou, poderíamos dizer, de um sonho a ver de formação social, pois a forma e o sentido dos horizontes de expectativas seriam igualmente frutos do que se vive e da forma como se vive as contradições da sociedade, ou seja, a experiência vivenciada, construída e significada pelos atores históricos.

No universo eisensteiniano de engajamento por futuro, aqueles indivíduos que percebem primeiro as contradições da sociedade teriam a responsabilidade histórica de conduzir ou provocar os processos de sua superação; porém, ser vanguarda da revolução guardaria a tensão inerente entre os ímpetos de normatizar (ações, recursos e dispositivos para superar as contradições sociais do presente) e os riscos de tais ímpetos sofrerem uma derrapagem autoritária que paradoxalmente anulasse o vigor libertário e renovador da Revolução. No entanto, tais riscos não se tornariam claros para Eisenstein até que vivesse a institucionalização stalinista do futuro comunista da URSS.

Entre 1918 e 1925, quando o comunismo ainda era um horizonte aberto de expectativa – em vez da experiência conclusa stalinista –, várias teses de futuro estavam criativamente em choque. Nesta conjuntura, Eisenstein sinceramente acreditava que a fraternidade revolucionária poderia até ser iniciada por poucos, mas o seu vigor libertário e transformativo não poderia ser mantido por poucos. A vanguarda revolucionária, a seu ver, precisaria ser efetivamente uma metonímia viva perfeita das massas em revolução – metonímia cujo sentido ético Eisenstein expressava esteticamente na forma como concebia a montagem conceitual de seus filmes na fase dos heróis coletivos do cinema mudo soviético.

Tal sentido de vanguarda revolucionária somente seria possível se seu horizonte de futuro fosse dialeticamente aberto, propositivo, próximo, ousado e tentativo, tal como na última cena de “Encouraçado Potemkim”, que entendo ser a síntese maior do pensamento social-estético de Eisenstein sobre a revolução bolchevique antes do stalinismo. Com o próximo ensaio, no qual apresento uma síntese das ideias de Eisenstein sobre a forma e o sentido do filme “Encouraçado Potemkim”, poderemos perceber a expressão dramática da história de uma esperança libertária, que fora desperdiçada, distorcida, silenciada ou esquecida pelos anos de pragmatismo stalinista e pelos ânimos celebrativos neoliberais do pós-Guerra Fria.

 

Referências

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CARVAHO, Diogo. Representações do Fascismo através do arco-íris cinematográfico soviético. Olho da História, n.13, p. s./d., 2009.

EISENSTEIN, Sergei. A Forma do Filme. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002a.

EISENSTEIN, Sergei. O Sentido do Filme. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002b.

EISENSTEIN, Sergei. Reflexões de um Cineasta. Rio de Janeiro: Zahar, 1969.

ESPAÑA, Rafael. Guerra, Cinema e Propaganda. Revista Olho da História, n.3, p. s./d., 1995.

FERRO, Marc. Cinema e História. São Paulo: Paz e Terra, 1992.

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NOVOA, Christiane. Revolução e contra-revolução na trajetória de Eisenstein. Revista Olho da História, n.1, p. s./d., 1995.

NOVOA, Jorge et alii. Cinematógrafo. São Paulo: Unesp, 2009.

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SILVA, Francisco da et alii. Enciclopédia de Guerras e Revoluções do século XX. Rio de Janeiro: Campus, 2004.

VIANNA, Alexander Martins. Cinema, Emoção e Análise Sociocultural: Reflexões sobre uma didática do uso do filme em situações de ensino e pesquisa. Revista Espaço Acadêmico, n. 125, p.41-50, 2011.


* ALEXANDER MARTINS VIANNA é Mestre e Doutor em História Social pela UFRJ. Professor Adjunto de História Moderna do Departamento de História da UFRRJ.

** No entanto, algo na direção apontada por Eisenstein seria retomado por George Stevens (1904-1975) depois da II Guerra Mundial, quando lançou “Um Lugar ao Sol” (1951), igualmente pelos estúdios Paramount, num momento em que a mobilidade social e a prosperidade nos EUA eram fatores de orgulho e concorriam ideologicamente, nos anos iniciais da Guerra Fria, com o projeto de sociedade da URSS.

5 comentários sobre “Eisenstein e o Cinema Soviético (II)

  1. Olá, gostaria de saber qual foi a edição da revista que foi publicada o ensaio sobre o filme Alexander Nevski?

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